Caroline Campos
O roteiro das aulas sobre a ditadura militar, traçado nas salas de Ensino Médio e cursinhos ao longo do país, é padronizado: em algum momento, quando introduzido os malabarismos para escapar da censura e as músicas de protesto contra o regime, Chico Buarque de Hollanda será citado. Será, no mínimo, mencionado – pode anotar. Não é para menos, afinal, Chico integra a gama de artistas brasileiros que sofreram com a repressão e a tesourada em suas composições para que se adequassem aos bons princípios dos governos militares. Mas o carioca tem um quê especial.
Perseguido pelos milicos em meio aos devaneios do “milagre econômico” da trupe de Médici, a situação se tornou insustentável a ponto de, em 1969, Chico Buarque deixar o Brasil e se instalar na Itália, em um autoexílio que durou pouco mais de um ano. O resultado de toda essa história completa 50 anos em 2021; quando o músico enfim retornou, no início da longa década de 70, trouxe com ele as letras daquele que se tornaria seu primeiro manifesto político. Nascia Construção.
Lançado em 1971, o oitavo disco de um dos maiores cancionistas da história da música brasileira foi também o segundo gravado pela Philips, que pouco antes havia lançado Chico Buarque de Hollanda nº 4. O sucesso de Construção, no entanto, foi astronômico. A gravadora precisou terceirizar os concorrentes para dar conta da prensagem, resultado dos 140 mil discos vendidos só no primeiro mês. Aquele álbum de capa marrom e meia hora de duração bombou pelo país, levando o filho de Sérgio Buarque de Hollanda a reconfigurar a dinâmica do cenário político-cultural em um Brasil amordaçado pelo medo.
Chico Buarque era figurinha carimbada dos censores que rondavam o país do AI-5. Como a inteligência não era uma característica das patentes militares, as letras irônicas e provocativas do músico passavam despercebidas pelos oficiais, que não demoravam muito a perceber a burrada e voltar atrás nas decisões. Julinho da Adelaide, inclusive, nasceu nesse período como uma nova tentativa do carioca de driblar seus algozes. O carimbo de vetado já era até familiar ao cantor. Foi assim com Apesar de você, foi assim com Cálice e, claro, foi assim com Construção.
Dentre suas dez faixas, o LP é marcado por um samba melancólico, tensionado pela própria realidade. Chico agoniza em suas melodias, construindo um paradoxo suave-agressivo para escancarar sua indignação em um disco indigesto, de um homem que enfrentou diretamente as consequências do ame-o ou deixe-o e ainda regurgitava em cima das lembranças do exílio. Construção elevou os parâmetros, aumentou as apostas, e, com seu pulso político firme, vibrante e vivo, uniu uma estética artística especialmente coesa e centrada ao grito de guerra entalado na garganta da Liberdade.
Composto ao lado de Vinícius de Moraes, Tom Jobim e Toquinho, o álbum também contou com a direção musical de Magro, do quarteto MPB4, e arranjos do maestro tropicalista Rogério Duprat. Chico estava, sem dúvidas, bem acompanhado. Assim, é Deus Lhe Pague que abre o disco, com uma sonoridade quase sombria e um vocal sóbrio e ecoado. A canção funciona como um sátira, alegorizando um agradecimento aos generais por me deixar respirar, por me deixar existir.
Apesar de separadas por duas outras músicas, Deus Lhe Pague e Construção são irmãs de luta e sangue. Ambas foram orquestradas por Duprat, que dá a suas óperas tons crescentes conforme os versos vão ficando cada vez mais fechados, claustrofóbicos. Construção, a faixa que deu título ao álbum, é inigualável – em 2009, a canção estampou o primeiro lugar da lista de melhores músicas brasileiras da revista Rolling Stone. Ela se costura à primeira em seus versos finais, que reprisa as sentenças acusatórias depois de uma narrativa extremamente bem delineada entre as composições nacionais.
Foi nos mais de seis minutos de Construção que Chico Buarque contou a história de um dos milhares de trabalhadores urbanos da década de 70. O suposto milagre econômico durante o período propulsionou o setor da construção civil, mobilizando um batalhão de operários-máquinas para erguer prédios nas grandes cidades. A vida descartável desses homens foi o motor da composição buarqueana, que conta com versos alexandrinos, de 12 sílabas, todos terminados em palavras proparoxítonas, que rimam apenas em decorrência da sílaba tônica.
Além da métrica incomparável da faixa, Chico cria um jogo de palavras que trocam de lugar e vão se encaixando em novas posições, enquanto o cantor repete, três vezes, a mesma história sem estampar, propositalmente, sensibilidade pelo fato – morreu na contramão atrapalhando o tráfego, o público, o sábado. Sua vida é insignificante, sua morte é indigna de atenção. Construção dói, assusta e revolta; não é à toa que a música é estudada para vestibulares, analisada por pesquisadores e ouvida sagradamente pelos apaixonados pelo Buarque-filho.
O disco chegou quase integralmente às lojas. Samba de Orly, que foi escrita com Toquinho e Vinícius de Moraes, precisou passar por adaptações para conseguir a aprovação dos censores. Pela omissão, um tanto forçada se tornou pela duração, dessa temporada, que é especificamente o verso que Vinícius contribuiu à faixa. Mesmo sendo o samba mais animado de Construção, a vividez dos instrumentos disfarça o fato de ter sido feito ainda na Itália, como se o carioca exilado enviasse suas lembranças à Cidade Maravilhosa, cheio de saudade de casa.
Desalento, por sua vez, foi órfã de outro trabalho. No começo de 1970, Chico lançou um compacto com duas músicas, Apesar de você e Desalento. Comicamente, o registro foi liberado pela censura, que não sacou a acidez impenetrável da primeira canção. Quando os militares voltaram atrás, apenas a parceira ganhou passe livre para integrar o disco posterior. Assim como Olha Maria (Amparo), que tem piano de Tom Jobim e parceria com Moraes, Desalento não possui nenhuma roupagem política bem definida, mas a atmosfera desiludida e abatida de ambas as faixas refletiam muito do sentimento geral da população brasileira.
Se de um lado Chico constrói músicas explicitamente críticas e do outro ele cria melodias românticas mais suaves, o que há no meio? A resposta é Cordão, a quinta entre as dez canções do LP. Sutil e amena à primeira vista, é repetindo a afirmação de que ninguém vai me acorrentar enquanto eu puder cantar que Chico ganhou mais um carimbo de vetado do governo. Nas grades do coração teve que se transformar em as portas do coração, e Cordão foi considerada um protesto contra a ordem vigente, mesmo com suas múltiplas interpretações.
Independente das músicas serem analisadas em grupo ou individualmente, não se pode separá-las da obra como um todo. Cada escolha musical e narrativa de Construção equivale a um alicerce que mantém o disco de pé meio século após seu lançamento. A coerência estética e temática de Chico Buarque é como uma criatura ainda viva, se alimentando dos rumos do país que a criou, ora debochando, ora estrebuchando.
A própria Cotidiano, que viria a se tornar um dos maiores clássicos da discografia de Buarque, é desenvolvida com ironia repetitiva para relatar a rotina entediada da vida de um casal comum. Brincando com construções iniciadas por todo dia, Cotidiano serve para cansar – cansar o cantor, o ouvinte e os personagens. E, claro, isso é o que torna a música ainda mais atraente, principalmente quando contraposta com o romantismo breve e idealizado de Valsinha.
Minha História, versão de Gesù Bambino, dos italianos Lucio Dalla e Paola Pallottino, abre os caminhos para a finalização de Construção, mas por se tratar de uma letra que referenciava Jesus em meio a ladrões e amantes – afinal, segundo a Bíblia, Jesus andou entre soldados e governantes, não é? –, o nome de Menino Jesus foi barrado. Depois de tanta dureza, não é de se surpreender que Chico opte por finalizar seu disco com um Acalanto, feito para sua filha Helena, na época com um ano. Mesmo com o tom lúdico e sereno, o recado do compositor está claro: não vale a pena despertar. Não nesse mundo, não nesse país.
Há muito ainda o que se discutir sobre Construção. 50 anos depois, em um Brasil que teima em eleger generais, que sustenta um genocida responsável por quase 500 mil mortes, não é à toa que Chico esteja guardado a sete chaves dentro de sua casa. O registro buarqueano pertence, mais do que nunca, à atualidade. O Brasil ainda está em construção, e seus tijolos, infelizmente, são erguidos com o sangue do próprio povo. Mas amanhã vai ser outro dia.