Carol Dalla Vecchia e Mateus Conte
A década de 60 no Brasil foi tortuosa. Naquela época, o país vivia uma crise política sem precedentes: a posse e repentina renúncia de Jânio Quadros abalava as bases democráticas da nação. Enquanto isso, a mil quilômetros do centro do planalto vazio, um ex-repórter policial iniciava uma das suas criações mais memoráveis.
Começos raramente são pomposos. Não foi diferente com o interiorano Mauricio Araújo de Sousa, convidado pela conhecida Cooperativa Agrícola de Cotia para desenvolver uma nova obra dos quadrinhos: os caipiras Zezinho e Hiroshi. Hiro, como é conhecido, representava os funcionários e familiares da CooperCotia, formada quase exclusivamente por isseis e nisseis. Dois anos depois, surgia o hoje famoso Chico Bento. Ou seja, ainda que Francisco Antônio Bento tenha surgido apenas em 1963, sua turma nasceu há exatos 60 anos.
Ao contrário dos outros dois personagens, ele falava o linguajar típico da roça, talvez a variante diatópica mais comum do nosso português, e rapidamente conquistou a identificação daquele público. Mauricio, cujos personagens figuravam apenas em páginas de jornais, retratava sempre o ambiente urbano em suas criações. No entanto, esse era o momento do quadrinista retomar suas próprias origens em Santa Isabel, Mogi das Cruzes e a bauruense Rua Araújo Leite, já conhecida de muitos de nós.
Não foi apenas o cenário do Chico Bento que foi inspirado na infância do cartunista, mas também todas as suas temáticas: uma das principais é a valorização da família, representada por seus pais Nhô Bento e a Dona Cotinha. Ambos são muito trabalhadores e exigentes com a educação de seu filho. Outro ponto importante é a preservação do meio ambiente: mesmo que ele pesque, cace e roube goiabas do Nhô Lau, tudo é feito visando a subsistência. Temas como pesca predatória e desmatamento, por exemplo, são sempre abordados de forma negativa.
Por fim, o último ponto fulcral da obra caipira de Mauricio é a religiosidade da Vila Abobrinha e do próprio Chico, com destaque para o sacerdote católico Padre Lino. O frade, que por suas vestes e tonsura aparenta ser franciscano, é o principal símbolo religioso dentro das histórias. Juntamente com os pais de Chico, Pe. Lino representa a figura paterna da infância, isto é, a personagem procura estabelecer às crianças o que é correto e o que é errado, construindo os conceitos morais de cada um deles.
Este conceito é um retrato fiel do que entendemos por Brasil profundo. Uma família simples, habitantes da zona rural, onde o pai trabalha na roça e a mãe é dona-de-casa; o filho frequenta a escola com seus amigos e namoradinha, mas não antes de passar por um bom caminho a pé. No final da semana, todos se encontram na igreja da vila.
Vale dizer que a religiosidade é o que coordena as demais áreas da revista: os personagens agem segundo seus princípios; e estes, por sua vez, são formados pelos ensinamentos do padre Lino. Como de costume na roça daquela época, o sacerdote também representa uma autoridade cultural na Vila Abobrinha: isto é perceptível nas histórias onde Frei Lino faz as vezes de professor de canto no coral litúrgico das crianças.
Além do Padre Lino, não raramente o próprio Deus aparece nas histórias. Quando isso acontece, ele sempre assume um papel protetor e que, ainda que por vezes pareça rigoroso, busca apenas trazer ensinamentos aos personagens. Do mesmo modo, o Diabo também teve algumas participações nos gibis: porém, de forma diametralmente oposta, ele pretende causar a doença, a desesperança e a morte. E, quando isso acontece, comumente há batalhas entre Deus e o demônio.
Porém, vale ressaltar que não foi apenas o catolicismo a figurar nas páginas das revistinhas do Chico. Em 1985, a história O Rezador apresentou a idosa negra Nhá Belarmina, uma benzedeira que se denominava como Preta Véia. Nela, a senhora ensina a Chico Bento todo o seu conhecimento sobre rezas e benzimentos que ela havia recebido de seus antepassados, continuando a tradição oral de sua cultura.
Curioso em descobrir se aquelas preces tinham efeito, Chico resolve testá-las invocando o sobrenatural para amarrar o amor de sua namorada Rosinha. A reza, porém, funciona de forma exagerada e Rosinha age como se estivesse em hipnose. Resolvida a situação, a maior lição de Chico foi entender que todo o poder obtido deve ser usado com sabedoria e responsabilidade.
Esta história demonstra que, embora o catolicismo tenha presença constante nas histórias da Vila Abobrinha, ainda há espaço para outras religiões e para aprender valores importantes com elas. Nobu Chinen, doutor em Ciências da Comunicação, explicou no artigo científico A religiosidade afro-brasileira nos quadrinhos que no momento da publicação dessa história do Chico Bento, as religiões de matriz africana eram sempre representadas de forma negativa, “capazes de interferir na realidade cotidiana, normalmente em benefício de interesses pessoais nem sempre louváveis ou como forma de obter poderes sobre-humanos”.
Porém, podemos dizer que se valer dos princípios religiosos para ensinar valores morais às crianças saiu de moda na Mauricio de Sousa Produções. Talvez em nome do ecumenismo, a cada era que se passa menos vemos este tipo de história nos gibis: comum na editora Abril, raro na editora Globo e praticamente inexistente na editora Panini, onde a turminha é publicada até hoje.
Voltemos a onde partimos: nos anos 60, frente a um país em contínua instabilidade financeira, política e econômica, Mauricio se valeu da cosmovisão religiosa para formar personagens verdadeiramente humanos, colaborando para a preservação do imaginário de várias gerações e provendo a milhões de crianças tudo o que elas mais precisam: alegria e esperança.