Jamily Rigonatto
Quão longe um lar instável e um vasto universo de microviolências podem levar alguém? Carrie não se dispõe a responder essa pergunta com plenitude, mas estrutura um argumento definitivamente cinético. No clássico de Stephen King, a personagem que se tornou um ícone do terror, dá vida a um misto de acontecimentos hiperbólicos para eventos reconhecíveis na realidade. A edição especial – publicada pela Companhia das Letras este ano sob o selo Suma – torna o relato perturbador da história da garota que fez pedras choverem e sangue jorrar tão sólido quanto uma imagem de Jesus pendurada na parede da sala.
Carrieta White é uma jovem comum: está no ensino médio, vive em uma cidade pequena chamada Chamberlain e mora com a mãe em uma casa nada especial. Pelo menos é o que parece e poderia ser, se a obra – traduzida no Brasil por Regiane Winarski – não nos fosse contada com o protagonismo da garota. A construção da história mistura relatos, trechos de reportagens e narração, nos inserindo na mente da personagem e fazendo com que o leitor seja capaz de experimentar a pele das pessoas e dos estigmas sociais presentes no universo do texto.
A princípio, a narrativa parece se debruçar sobre o evento da telecinese e a grande especulação por trás de um poder tão único e impressionante, mas o desenrolar do enredo revela que aqui o fantástico é apenas um coadjuvante. Carrie tem a habilidade plenamente desencadeada após a primeira menstruação ocorrer no vestiário da escola da maneira mais desconcertante possível. A garota, tolhida de saber o significado da menarca, vive uma cena dramática e vergonhosa na frente das colegas – que não demoram a mostrar toda crueldade cabível em corpos adolescentes. A hostilidade não se limita às páginas e, por um minuto, se torna impossível não julgar Carrie e seu comportamento fora das linhas do socialmente aceitável.
Se Carrie parece distante dos padrões de comportamento esperados para um ser humano, sua mãe, Margaret White, carrega a culpa como se mordesse o fruto proibido. Aquela que deveria representar um porto seguro para a filha a enxerga como um castigo divino e faz de tudo para consertá-la do jeito mais distorcido possível. As colegas de Carrie e os xingamentos no banheiro pareciam ruins, mas é testemunhar a jovem sendo obrigada a pedir perdão e orar repetidas vezes pela naturalidade do próprio corpo que começa a dar nome aos verdadeiros vilões.
Os mecanismos de linguagem e a forma como os acontecimentos estão dispostos na obra são os principais responsáveis pela construção dinâmica de Carrie. Em 208 páginas, o Rei do Terror brinca com os eventos para que sejamos capazes de viver descobertas e epifanias de forma frequente. Assim, o papel de antagonista viaja entre os personagens e também vive no contexto social de Chamberlain. Entre o sangue e os objetos voadores, existe uma ferida tão profunda que foge do material.
No bullying, nas inseguranças, na exclusão e no fanatismo religioso, Carrieta é o resultado de 16 anos de opressão. Em casos comuns, tudo terminaria em perspectivas frustradas que – com sorte – seriam desmanchadas em um divã, mas aqui o resultado se avermelha em forças sobrenaturais. Cada decepção, medo e até os pequenos momentos de alegria da protagonista se somam no desenvolvimento da telecinese e levantar a cama com a força dos pensamentos se torna parte da rotina.
“Sua mente tinha… tinha… ela procurou uma palavra. Tinha se flexionado. Não era bem isso, mas era quase. Houve uma curvatura mental curiosa, quase como um cotovelo não aguentando sustentar um haltere. Também não era bem isso, mas era a única coisa em que ela conseguia pensar. Um cotovelo sem força. Um músculo fraco.”
Um destaque da obra é saber brincar com aspectos diversos da humanidade. As vivências refletidas em Carrie vem do ódio, do amor, dos traumas, da manipulação, do arrependimento, da empatia e de outros vários espaços constituintes do âmago. Stephen King não deixa espaços para o maniqueísmo, nada e ninguém vem com veredito. Essa construção aproxima o texto da vida real e fica fácil esquecer da ficcionalidade: por muitos momentos as manchetes de jornal parecem tão concretas quanto os escândalos políticos.
Através da impiedade vive também a clemência e, assim, a Senhorita Desjardin, Sue Snell e Tommy Ross são reflexos das atitudes mais empáticas da narrativa. Os três, mesmo que indiretamente, são os responsáveis pela idealização do momento mais feliz e mais doloroso da vida de Carrie: o baile. Cada um com as próprias motivações, veem na noite de gala a oportunidade perfeita para que a excluída tivesse a chance de sentir o mínimo de normalidade. Apertar o couro em um vestido bonito, usar um batom que esconde as marcas da vida e sorrir enquanto dança uma música lenta com o garoto dos sonhos parecem ser o tipo de coisa que apaga uma vida toda de sofrimento, pelo menos por algumas horas.
De certa forma, eles não estavam errados e, enquanto compra o tecido para o traje da tão esperada noite e se prepara, a garota tem um despertar. Ela passa a enfrentar certas atitudes da mãe, desvia da humilhação e percebe que na verdade nunca foi feia ou esquisita. Toda essa coragem é respaldada pelo convite de Ross, mas também pela evolução de suas capacidades telecinéticas. Quanto mais coisas flutuam desafiando a gravidade, mais a personagem percebe sua força e extraordinariedade.
“Ela começou a correr, respirando fundo no peito, correndo de Tommy, dos incêndios e explosões, de Carrie,mas mais do horror final, aquele último pensamento iluminado carregado depressa pelo túnel preto da eternidade, seguido pelo zumbido vazio e idiota da eletricidade prosaíca. ”
Se por um lado Sue se desenvolve em boa intenção, Chris Hargensen se afoga em planos avinagrados. A personagem, que poderia facilmente ser qualquer patricinha como Regina George, acaba indo longe demais pela futilidade de si e desejo de aprovação de um relacionamento tóxico. Acompanhar seus pensamentos e passos até o fatídico estopim da narrativa é assistir alguém que vê Carrie com o mesmo valor de um porco para abate.
Assim, a noite dos sonhos da protagonista é arruinada por um balde de água fria – ou sangue quente. Ser ensopada de fluidos de porco no momento em que se tornaria rainha do baile não é a pior coisa que aconteceu com Carrieta, mas é o gatilho que faltava. A metáfora de uma vida toda com sonhos destruídos por sangue: menstrual, porco e o sangue de Cristo.
King novamente nos coloca em um papel em que não há espaços de certo e errado, não é como se fosse cruel torcer para a garota transformar a cidade em um caos incendiado, afinal os limites da Literatura não cabem em caixinhas de moralidade. Entre tanta dor, o erro do autor parece ser não permitir a felicidade de Carrie nem por uma noite. Entretanto, isso nunca foi uma promessa: apenas uma expectativa moldada por nós mesmos e a estranha tendência humana de sempre olhar as coisas com esperança.
Diante de todas as questões exploradas em Carrie, a opressão merece visibilidade e ronda todos os aspectos dos poucos anos da garota. A construção iniciada com a própria rejeição e ódio da mãe monta um dos conflitos mais importantes da trama, em que as personagens se tornam escravas de um medo paranóico escondido por trás do fanatismo. Na casa das White, a imagem de Jesus – mesmo que deformada por mentiras – é quem manda.
Talvez explorar um pouco mais do momento em que a Mamãe cria essa imagem da religião poderia trazer esclarecimentos. Como não o temos com todos os detalhes, o motivo por trás das inúmeras orações fica aberto a interpretações. Em certo ponto da narrativa, a presença da telecinese em outras gerações da família White parece ser um bom ponto de partida para essas teorias. É fácil transformar aquilo que não sabemos explicar em demônios sem possibilidades de redenção.
Mesmo com todas as atitudes perversas, o lugar de julgamento para a mãe ainda é limitado por algo além de nós. Margareth White é desprezível, mas acredita com plenitude que está protegendo a filha. Aos seus olhos, o escudo do pecado é palpável, capaz de ser tocado por aqueles que se submetem ao autocontrole excessivo. Criar Carrie acorrentada a crucifixos é purificar o fruto do próprio erro – desde que o conceito de errar esteja ligado à subjetividade.
“Ela tentou se levantar, fracassou e apoiou no banco da Mamãe. A tontura e a náusea tomaram conta dela. Ela sentia gosto de sangue, forte e gosmento, no fundo da garganta. Fumaça acre e sufocante entrava pelas janelas agora. As chamas tinham chegado na casa ao lado; mesmo agora, as fagulhas estariam caindo de leve no telhado no qual as pedras penetraram brutalmente mil anos antes.”
O livro não precisa dramatizar nada, tudo é cru a ponto de ser cruel. Mesmo sem se pautar no sentimentalismo, o verdadeiro incêndio vive dentro de Carrie e não precisa de termos poéticos para se materializar. Ela é um espelho vivo, reflete tudo que os outros marcaram nela e não importa se isso vai resultar em cadáveres com roupas chiques; não está dentro do controle, nunca esteve.
Carrie poderia facilmente ser um clichê de filme teen e conta com todos os elementos necessários para isso: a mãe com um ar de madrasta vilanesca, a garota popular que arquiteta vinganças, a mocinha com arco de redenção, o quase príncipe encantado e a vítima. Em roteiros comuns, isso resulta em um ‘felizes para sempre’ e Carrieta poderia ter seu momento de glória. Ainda bem que King nunca se propos a comodismos. Em Chamberlain, queimar no inferno é absolutamente literal.