Vitor Tenca
Convergir o que há muito tempo está fragmentado nunca seria uma tarefa fácil. Saul Goodman embarca em um capítulo de desafios contra vilões-heróis já consolidados para provar que uma mente do crime e da justiça pode precisar de uma mesma qualidade: saber cortar caminhos. Na sexta temporada de Better Call Saul, olhamos para os detalhes finais que constroem a narrativa ressentida e desenfreada da vida de um ex-advogado.
A série da AMC distribuída pela Netflix foi encaixada nos novos moldes destinados aos seriados da plataforma de streaming – separados em dois “blocos”, os primeiros nove episódios foram lançados semanalmente e, após pausa de um mês, os últimos quatro foram ao ar da mesma maneira. O método acabou por ajudar o diretor Vince Gilligan e o produtor Peter Gould com a proposta sequel-prequel do seriado, em que o telespectador se deparou com dois ambientes completamente distintos nessas duas etapas da produção.
Os 50 episódios previstos nas outras cinco temporadas são amarrados de maneira magistral, sem deixar nenhuma ponta solta ao longo dos últimos treze. De fato, parece que Vince e Peter já tinham em mente um plano geral para a série, de modo que nenhuma decisão fora tomada em vão (um personagem, uma narrativa, um ângulo de câmera, uma transição, um cenário). Os dois passam a impressão de que houve uma grande evolução das mentes [já] brilhantes do diretor e produtor, inovando continuamente com o passar do tempo das produções.
Sem James McGill não há um Heisenberg, sem Better Call Saul não existe Breaking Bad. Saul não exagera em puxar sua sardinha em pleno tribunal para provar, uma última vez, que o advogado se sobrepõe à função de coadjuvante estabelecida previamente por Jesse e, principalmente, Walter. É inclusive aqui que é indagada a grande questão: o que diferencia as duas séries? A resposta é simples e inusitada – a culpa é o atributo inserido no universo com a função de tornar os personagens mais dignos de afeiçoamento e salvação em meio às sequências de trapaças, golpes e vigarices. No fim das contas, esse pequeno detalhe torna a trajetória de BCS ainda mais densa e realista do que a de BrBa.
Os treze últimos episódios conseguem envolver o telespectador com ainda mais fervor se comparados com as temporadas anteriores. Torna-se cada vez mais difícil nos separar das angústias que atormentam cada personagem. E esses fatores são potencializados em passagens específicas, como nas cenas finais de Nacho Varga (Michael Mando), nas paranóias inusitadas de Gustavo Fring (Giancarlo Esposito), nas aparições eletrizantes de Lalo (Tony Dalton) e nos momentos sóbrios e duros de Mike (Jonathan Banks).
Jimmy McGill, Saul Goodman e Gene Takavic são além de simples pseudônimos de um homem sem lei – são realidades distintas que nos aproximam ou nos repelem do protagonista que foi destinado a ser interpretado por Bob Odenkirk. Saul ultrapassa a grandiosidade de um Heisenberg, pois acompanhamos o movimento pendular entre um oportunista e uma boa pessoa que, no fim das contas, merece a “salvação” das maçãs podres ao seu redor. E, no fim, o mais interessante é descobrir qual personalidade prevalece.
Enquanto isso, Rhea Seehorn transita de maneira brilhante em seu papel como Kim Wexler, vivendo uma montanha-russa de desejos, emoções, traumas e decisões. Dividida em uma Kim pré-Hamlin e pós-Hamlin, a personagem caracteristicamente justa e dedicada dá mais espaço ao seu lado Slipping Kim para se entreter na vingança contra “pessoas superiores”. Em seguida, somos surpreendidos com uma Wexler totalmente entregue ao remorso, vivendo em um mundo sem cor, sem vida, sem personalidade.
Indicada ao Emmy 2022 em 7 categorias, incluindo a de Melhor Série de Drama e a de Melhor Roteiro em Drama, para Thomas Schnauz pelo episódio Plano e execução, Better Call Saul tem em sua sexta temporada a chance de tirar dos ombros o peso das constantes esnobadas da premiação. Bob Odenkirk e Rhea Seehorn, que na edição passada se contentaram apenas com lamentações por não serem sequer nomeados, concorrem neste ano como Melhor Ator em Série de Drama e Melhor Atriz Coadjuvante em Série de Drama, buscando levar para casa as tão sonhadas e merecidas estatuetas.
A ponte que liga Better Call Saula Breaking Bad é a mesma que aparenta fechar as portas do mundo da metanfetamina – pelo menos por enquanto. Tanto Vince Gilligan como o próprio presidente da AMC já se mostraram abertos a um possível retorno de novos spin-offs num futuro próximo. Isso se dá em função do ótimo trabalho de BCS em instigar os fãs a conhecer ainda mais das trajetórias e peculiaridades de diferentes versões de “protagonistas”.
Mantendo a coesão da série original sem ter medo de aprofundar-se em suas próprias individualidades, Better Call Saul se concretiza como um sucesso absoluto. No que diz respeito aos novos personagens preferidos de muitos fãs, podemos perceber a realidade que prevalece após um final abrupto, seco, amargo e necessariamente direto: não há mais nenhum Saul Goodman em cena, apenas um McGill, sem extravagâncias, sem demais truques, sem cortes de caminho, sem escorregões.