Ayra Mori
Intocável, a figura da freira se tornou fonte de lascivas fantasias. Cobertas pelo mistério do tecido negro de seus hábitos, enclausuradas pela solidez das paredes de pedra e tomadas pela devoção santificada por Jesus, desde a origem da Igreja Católica como organização, a silhueta inconfundível das noivas de Cristo corporificou-se, do espírito à carne, contra o olhar. Desse olhar reprimido emergiu uma miríade de representações cuja maior tentação se debruça no magnetismo feminino oculto dentro de um convento. No retorno de Paul Verhoeven em Cannes 2021, o drama semi-biográfico Benedetta tateia o subgênero, revelando, por trás do protagonismo progressivo das mulheres enquadradas em cena, um agressivo observador – masculino.
Na Sétima Arte, o subgênero se popularizou em particular nas décadas de 1970 e 1980, passando a ser identificado como nunsploitation. Despertado pela obra-prima ainda censurada do diretor Ken Russell, Os Demônios (The Devils), assim como as demais ramificações do Cinema Apelativo (ou exploitation), o tropo dos subgêneros de freiras desmascara a corrupção dos valores morais difundido pelo conservadorismo da sociedade tradicional, aqui, especialmente da Igreja Católica. Nele, a espetacularização da violência é levada ao máximo, com direito a nudez excessiva, mutilação revelada, homoerotismo e, bem, sexo.
Despido de qualquer moralismo simulado, a violência posta em cena nesses filmes esteve intimamente vinculada com o contexto do período: a ascensão da contracultura concomitante à uma atmosfera selvagem dos conflitos urbanos. E em reação as forças disciplinadoras do “civilizador” branco, cristão e heterossexual, o subgênero marginal transgrediu o “bom gosto” da indústria cinematográfica estadunidense hegemônica, pondo o sexo em posição central da trama, à semelhança de toda a filmografia do holandês Paul Verhoeven. O sexo não como ferramenta narrativa simplesmente utilitária, mas como uma linguagem simbólica autodeterminante na crítica de estruturas problemáticas.
Para quem acompanha o universo cinematográfico de Verhoeven, fica bastante evidente o apelo do cineasta sobre o subgênero. Dos filmes holandeses do início da carreira até a rejeição de seu Cinema em Hollywood, ele sempre pregou afincadamente sexo com poder. Compreendendo a hipocrisia puritana dos grandes estúdios norte-americanos, a direção de Verhoeven exacerbou a violência em níveis brutais – a agressividade da força policial em RoboCop: O Policial do Futuro; o erotismo sadomasoquista de Instinto Selvagem; o hiperbolismo camp do magnífico Showgirls; a sátira belicista mal interpretada de Tropas Estelares; e o trauma intragável de Elle, são exemplos do porquê Verhoeven e nunsploitation pareceu ser o casamento perfeito.
Benedetta foi baseado na história real de uma freira italiana do século XVII, cuja vida foi documentada detalhadamente pela historiadora da Universidade de Stanford, Judith C. Brown, no livro Atos Impuros: A Vida de Uma Freira Lésbica na Itália da Renascença. Publicado em 1986, o livro reuniu as transcrições do primeiro caso de lesbianismo registrado pela Igreja entre duas irmãs: Benedetta Carlini (Virginie Efira), uma jovem freira em ascensão que posteriormente tornou-se abadessa de seu convento na Pescia, em Toscana, e Bartolomea (Daphne Patakia), uma noviça incubada de acompanhar a primeira.
Nascida de uma família abastada, Benedetta ingressou na vida beata aos nove anos de idade sem grandes determinações, exceto pelo seu dom espiritual – a habilidade de ter visões sobrenaturais com Cristo. Exatamente o tipo de visões extáticas descritas um século antes por Santa Teresa D’Ávila, freira carmelita e exemplo máximo do poder erótico da extrema religiosidade feminina. Episódios de imensa agonia, contudo, foram descritos pela santa com forte caráter sexual.
“Eu vi em sua mão uma longa lança de ouro cuja ponta parecia ser um pequeno fogo. Ele parecia penetrá-la várias vezes no meu coração e perfurar minhas entranhas; (…) deixando-me em fogo, com um grande amor em Deus. A dor era tão grande, que me fez gemer, e ainda assim foi superando a doçura desta dor excessiva, eu não pude querer livrar-me dela.”
E similar à figura barroca de uma Santa Teresa desfalecida, as revelações místicas de Benedetta também lhe permitiram transgredir as restrições sociais de seu tempo. Quando em transe, suas visões eram embelezadas por teatralidade, sadomasoquismo e paixão. Possuída por uma divindade masculina, amar outra mulher não seria profano, pois assim era a vontade sagrada. Ela não podia responder por algo que, segundo ela, não estava consciente. Dessa maneira, enganando aos demais e a si mesma, a sexualidade de Benedetta esteve intimamente arraigada com o imaginário criado por ela, dando licença para que ela não somente amasse Bartolomea, mas que, em retrospecto, fosse igualmente amada, livre de culpas.
“Quando eu punha a mão ali, era como se um punhal a ferisse (…) e com a minha mão ali, ela parecia agitar-se menos. (…) Às vezes ela me chamava duas vezes numa noite (…) e dizia ‘Segure-me, ajude-me’ (…) logo que eu a escutava, eu colocava a mão no coração dela e a acalmava. (…) E quando Ele pôs (o coração) dentro dela, eu comecei a ver que a carne se levantava e se movia devagar, bem devagar (…) eu o toquei e parecia tão grande e tão quente que minha mão não pôde suportar.”
Mas Verhoeven não é um romântico e sua natureza é escandalosa. Em nome da interpretação realista dos fatos históricos, somada à estimulação dos excessos comum do cineasta, a versão cinematográfica de Benedetta permite se guiar pelas torções fantasiosas do desejo blasfemo das duas freiras, sem nunca reivindicar inteiramente o potencial erótico como possibilidade revolucionária da desobediência das amantes.
Inserido no interior de uma sociedade matriarcal, longe da domesticidade compulsória da heterossexualidade, Benedetta é uma história fundamentalmente feminina. As personagens, mulheres, enclausuradas pela repressão do convento, não conhecem nada além do feminino. Como um boneco crucificado, Jesus é uma figura andrógina, assexuada. No entanto, há um silencioso duelo entre a irmandade comunitária e o poder patriarcal. As manifestações sobrenaturais de Benedetta sinalizavam uma perigosa ameaça à ortodoxia da Igreja Católica. Primeiro, porque existia uma hierarquia rigidamente vertical do poder eclesiástico; segundo, porque as mulheres eram sistematicamente consideradas o sexo mais fraco.
Assim, como poderia Deus se comunicar com uma mulher e não com um homem? Era Benedetta uma escolhida divina ou uma vítima de possessão demoníaca? Seria uma freira capaz de diferenciar a fonte dessas visões? O resultado foi o início de um julgamento liderado por um grupo de homens da fé, responsáveis por determinar o destino de Benedetta, de santa venerada à pária farsante. A partir desta metade do filme, a crítica acima da instituição católica se agudiza. Proporcionalmente à Igreja, a falsa heroína entende que sua visão lhe concede poder e emancipação da autoridade eclesiástica – nem que isso sugerisse a mutilação de sua própria carne.
No filme, a dor é instrumento de elevação de Benedetta que, quando criança, aprende que “o seu maior inimigo é o seu corpo”. O corpo, como uma gaiola claustrofóbica na qual ela jamais deve se sentir confortável. Somente adulta, posteriormente à chegada de Bartolomea, um impulso desperta a castidade compulsória da freira. Diante de um objeto refletor, pela primeira vez, ela explora o próprio seio, em curiosidade. O mesmo seio que antes se espelhava em figuras não sexuais para ela – o seio do mármore leitoso de uma Virgem Maria esculpida; o seio de uma irmã freira acometida pelo câncer de mama; e o seio em lactação de uma mulher grávida.
Diferente dos protestos reacionários sobre a nudez excessiva das atrizes em tela, no filme, ela não é gratuita, apenas cruelmente realista. As cenas de sexo são duas: o despertar sexual de Benedetta com Bartolomea e a simulação de um instrumento erótico esculpido na estatueta de uma Virgem Maria. Não inseridos na lógica de trabalho, segurança nos sets de filmagem e validação da misoginia, a discussão acima do sexo no audiovisual, aqui, soa moralista e vazia. Para Verhoeven, o erotismo é grotesco, desagradável e excitante, permeando as ambivalências entre sagrado e profano, bem e mal, repressão e libertinagem, dor e prazer, indulgência e abnegação, religião e ciência.
Então, ultrapassada a fronteira do carnal, Benedetta encontra, tanto no sexo, quanto na dor, a resposta de que se seu corpo é inimigo, seu corpo é também seu aparato. E aqui, o drama renascentista de Verhoeven ativa um odor putrefato. Particularmente em uma sequência questionável, ainda que não sexualizada, da punição de Bartolomea após ser acusada de sodomia, quem coisifica o corpo das mulheres em instrumento para a crítica de uma instituição falida, não são as personagens femininas, mas Paul Verhoeven, o cineasta holandês por trás do olho que tudo enxerga.
Quando aparenta transgredir as chagas das estruturas tradicionais, Verhoeven nunca chega até o fim. Sob o hábito de uma freira cheia de apetite, o cineasta gradativamente empalidece a autoexpressão das protagonistas quando converte seus corpos – sobretudo, suas dores –, em único meio para a emancipação monástica, feminina e queer. Mesmo com a ressignificação de um dos subgêneros mais misóginos do Cinema pelo relato verídico de Benedetta, o diretor reafirma involuntariamente o voyeurismo masculino que vislumbra a atrativa dupla negação entre a “freira intocável” e “lésbica inalcançável”. Passados quase quatro séculos desde o julgamento abusivo de Benedetta Carlini, em 2021, Verhoeven faz com que, mais uma vez, todos bebam do sangue dela. Somente pelo sofrimento de seu corpo, inteiramente esgotado, se atinge a libertação, à sombra de uma justificativa que soa tão dissimulada quanto a corrupção clerical criticada por ele.