Vitória Lopes Gomez
“Belfast ainda estará aqui quando você voltar”. Dito e feito: o bom filho à casa torna e o ator, diretor, roteirista e produtor Kenneth Branagh usou seu espaço na Sétima Arte para reviver a infância na sua familiar vizinhança. Irlandês, o cineasta se mudou para a Inglaterra aos nove anos de idade, em um período em que seu país e cidade natal enfrentavam os conflitos entre católicos e protestantes. Branagh, um dos principais entusiastas shakespearianos da indústria cinematográfica, entre outras diversas produções no currículo, se voltou, agora, à sua própria história. Com um molde autobiográfico, Belfast relembra os dias de seu idealizador na cidade, mesmo que a nostalgia não seja tão simples.
No filme, também roteirizado por Kenneth Branagh, acompanhamos o desenrolar dos ataques e o cotidiano de uma família através da perspectiva de Buddy (Jude Hill). Assim como a narrativa, o garoto, de cerca de nove anos, é inspirado no diretor e funciona como sua versão mais nova. É pelos olhos dele que Belfast se desenrola. Sem contextualização prévia, os eventos do The Troubles, como ficou conhecido o movimento separatista étnico-religioso que aterrorizou a Irlanda do Norte dos anos 60 aos 90, somos tão inocentes quanto a criança em presenciar a mudança daquela vizinhança, de pacífica e aconchegante a hostil e ameaçadora.
Belfast não tem pretensão de entregar um drama de época. A brusca virada na vida de seus personagens, que reflete no dia a dia e pauta o desenrolar da obra, é significativa para contar a história e o olhar de Buddy, não para dar aula ou conscientizar acerca de um evento histórico. Nisso, o filme tem seu ponto alto. Somado a direção e a visão de Branagh, que imprime pessoalidade e carinho a cada um dos 98 minutos, o ator mirim Jude Hill cria um Buddy mais do que capaz de nos convencer que sua paixão de infância, interpretada pela adorável Olive MacDonald, e seu dever de casa de matemática são tão importantes quanto as explosões e batalhas porta afora.
Afinal, para ele – e para um Kenneth Branagh de nove anos – talvez sejam. O roteiro de Belfast foi uma carta cheia de afeto não só à cidade do título, que aparece primeiro em cores vivas, nos dias de hoje, mas também à beleza da infância. Até os ângulos de filmagem – incomuns, a princípio – expõe a forma como o garoto enxerga o mundo, com a inocência, ingenuidade e esperança de uma criança. A maneira com que Buddy vê os pais também explicita isso: apesar de ausente, o pai é quase um herói para ele, nobre, corajoso e sempre simpático com os outros. Já a Mãe/Ma de Caitriona Balfe, apesar de estar sobrecarregada com a criação dele e do irmão, Will (Lewis McAskie), raramente quebra a postura de forte e nem por um momento aparece desarrumada, mas sempre bonita e elegante aos olhos do filho.
Brannagh, com seu visível amor pelo Cinema, aproveitou a oportunidade para rechear o filme com as delicadezas e os toques atenciosos de quem conta a própria história. A admiração pela beleza da cinematografia, inclusive, se estende por diferentes gêneros e por produções diversas, na longa lista de trabalhos do irlandês. O artista já passeou pela cena dos heróis, no comando de Thor, a estreia do Rei do Trovão nos cinemas, e até pelo mundo da magia, interpretando Gilderoy Lockhart, o professor pilantra de Hogwarts, em Harry Potter e a Câmara Secreta. Agora, além de Belfast, também está em cartaz com Morte no Nilo, filme adaptado do livro homônimo de Agatha Christie, que dirigiu e em que segue interpretando o detetive Hercule Poirot.
Para recriar sua própria trajetória, Kenneth Branagh, o coração por trás de Belfast, investiu em seu elenco. Jamie Dornan, o intérprete do Pai/Pa, realmente encarna a postura de corajoso e protetor, esbanjando carisma. Em algumas cenas, inclusive, a visão de Buddy coloca o progenitor em situações (muito provavelmente) ficcionais, que surgiram mais da admiração da criança do que de um acontecimento real. Quando o personagem salva a família da gangue local, em uma cena à la faroeste, a idealização da figura paterna destoa. O mesmo acontece com os avós. O Avô/Pop de Ciarán Hinds e Avó/Granny de Judi Dench são compreensíveis, aconchegantes e familiares, servindo o tempo todo como o apoio e o conforto de Buddy – e do telespectador. Em meio às incertezas da vida do garoto, ambos, junto dele, protagonizam os momentos mais memoráveis e emocionantes do filme.
Não por menos, o elenco de Belfast foi reconhecido. No Hollywood Critics Association, organização formada por críticos cinematográficos, os integrantes do filme saíram vitoriosos como Melhor Elenco, além do troféu de Melhor Ator Estreante para o pequeno Jude Hill. No Globo de Ouro e no BAFTA Awards, outras importantes premiações do Cinema, Balfe, Dornan e Hinds também foram considerados, todos nas categorias de atores coadjuvantes. Já no Oscar, tido como uma das maiores honrarias do meio, o Avô foi indicado como Melhor Ator Coadjuvante e a Avó como Melhor Atriz Coadjuvante. Judi Dench, inclusive, já tem outras passagens pela premiação e esse troféu não seria o primeiro: ela venceu como Melhor Atriz por seu trabalho em Shakespeare Apaixonado, em 1999.
Apesar de seu peso, o elenco, formado exclusivamente por pessoas brancas e europeias, não é uma novidade em uma indústria cinematográfica que sempre os reconhece, no lugar de profissionais tão bons – ou ainda melhores – de outras etnias, nacionalidades e minorias sub-representadas. No SAG Awards, em que foi indicado na mesma categoria, o filme perdeu para No Ritmo do Coração, com o Sindicato dos Atores de Hollywood reconhecendo um elenco principal majoritariamente surdo.
O roteiro, a direção e a produção também receberam suas piscadelas da premiação, estabelecendo um novo recorde para Kenneth Branagh, que se torna o artista mais indicado em diferentes categorias no Oscar – são 7 ao longo da carreira, mas até agora sem nenhuma vitória. É claro, a narrativa de Belfast não foge muito do que atrai a Academia, sendo um dos mais tradicionais da edição: o filme está cotado para levar o careca dourado em Melhor Roteiro Original, Melhor Filme e Melhor Direção, todos para Brannagh. Além dos prêmios tradicionais, que levarão os artistas aos palcos do Teatro Dolby em Los Angeles, a obra também foi nomeada na categoria Melhor Som. Entre os creditados pela sonoplastia, a vitória na categoria entregaria o totem dourado a uma mulher negra, Denise Yarde, que também é apenas uma das duas mulheres concorrendo na modalidade.
Com os poucos avanços de Belfast, e seguido de um ano que concedeu o troféu máximo a uma obra sul-coreana com críticas ao capitalismo e ao imperialismo, e uma edição que premiou uma cineasta chinesa explorando as rachaduras do sonho americano, quão relevante é um drama sobre a infância na Europa, por mais difícil que esta pode ter sido? Entre alguns de seus concorrentes a Melhor Filme no Oscar 2022, tampouco o filme é um destaque. Ataque dos Cães, faroeste que explora masculinidade tóxica e é dirigido por uma mulher (ninguém mais, ninguém menos que a brilhante Jane Campion); Drive My Car, drama japonês e o único em uma língua não-inglesa a disputar na categoria; CODA, outra produção com uma história sobre família, mas protagonizado por pessoas com deficiência auditiva; e King Richard: Criando Campeãs, com um elenco majoritariamente negro, são melhores opções para uma premiação tradicional que se comprometeu em avançar na representatividade de seus indicados.
Ainda assim, Belfast não deixa de ser tocante. O carinho que Kenneth Branagh imprime na obra é indiscutível e os dias de menino de Buddy, a versão ficcionalizada do diretor, revelam a beleza da infância até em preto e branco. Para além da memória afetiva da vizinhança irlandesa, o filme também homenageia o Cinema, uma constante na vida do menino. Em algumas das cenas mais emocionantes do longa, a família protagonista se diverte e se impressiona com o poder da Sétima Arte, e traduzem a influência desta na vida do cineasta, que, hoje, trabalha como ator, diretor, roteirista e produtor. Ao final, tanto Buddy quanto Branagh deixaram Belfast, mas voltaram melhores do que saíram, como sua avó avisou. Bastava ir e não olhar para trás.