Continuação do quadrinho clássico começa bem, mas é logo barrado pela cruzada antiterrorista do autor.
Após uma sequência ruim de obras, Miller retorna a sua série mais conhecida. (Créditos: DC Comics)
Lucas Marques dos Santos
O primeiro Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, lançado em 1986, é um inegável marco nas histórias de quadrinhos ao situar os super-heróis em um ambiente político, de violência explicita e midiatizado. Junto com Watchmen, de Alan Moore, os quadrinhos de super-heróis começaram um movimento de conquista de um público que ia além do infanto-juvenil masculino já estabelecido. Hoje, 40 anos depois do original, O Cavaleiro das Trevas III está sendo publicado – por enquanto somente nos EUA com o título Dark Knight III: The Master Race. Entretanto muita coisa se passou e Frank Miller não é o mesmo.
As obras de Frank Miller no aspecto temático podem ser divididas em um ponto histórico, do qual este novo quadrinho do Batman não é exceção: os atentados de 11 de setembro de 2001. Nos anos 80, Miller transformou a estética dos quadrinhos americanos ao incorporar técnicas e temas do mangá, que ainda era pouco popular no ocidente. Ao passar da Marvel, na qual escreveu e desenhou excelentes histórias do Demolidor, para DC, o artista propôs uma história distópica protagonizada por um Batman envelhecido e aposentado. Pela narrativa gráfica ousada (que incluía, por exemplo, muitos dos recursos dos telejornais e jogos de sombra e luz) e pelo teor adulto, O Cavaleiro das Trevas se tornou quase que um instantâneo sucesso de vendagem e crítica.
Miller continuaria a produzir obras de sucesso com contribuições importantes principalmente para os gêneros noir (Batman Ano Um, Sin City) e ficção científica (Martha Washington vai à Guerra, Elektra Assassina). O fascínio pela violência e pela política militar podem ser identificados em grande parte de sua obra, como na famosa 300, mas sem transparecer uma posição política conservadora.
A queda das torres gêmeas foi presenciada pessoalmente por Miller e as consequências dessa experiência foram expressas justamente na aguardada continuação de O Cavaleiro das Trevas. Utilizando-se de um estilo gráfico mais debochado, Miller expandiu a paranoia típica do Batman para todo o universo da DC, atribuindo aos heróis características violentas e autoritárias.
Os projetos de Miller então passaram a ser cada vez mais escassos e graficamente caricatos, como All Star Batman e Robin, parceria com o desenhista Jim Lee que, de tão mal recebida, foi cancelada. Mas o extremo dessa visão deturpada se deu pelo álbum Holy Terror, de 2010, na qual o protagonista entra numa matança aos terroristas islâmicos, em uma visão totalmente maniqueísta. O gibi, aliás, foi originalmente concebido como uma história do Batman.
O Cavaleiro das Trevas III não é exceção nesta fase de Miller, o que decepciona levando em conta o começo promissor da série. Inteligentemente a DC Comics colocou Miller para trabalhar junto ao roteirista Brian Azzarello (especialista em noir, como 100 Balas) e do desenhista Andy Kubert, detentor de uma boa narrativa gráfica e advindo de uma família de quadrinistas. Completando a equipe está o lendário arte-finalista Klaus Janson, que trabalhou no primeiro Cavaleiro das Trevas.
O primeiro número parte de alguns acontecimentos estabelecidos anteriormente: Batman está desaparecido, assim como sua Robin Carrie Kelley; Superman se aposentou ao se auto-congelar; e Lara, filha das cenas bizarras de amor entre Superman e Mulher Maravilha em Cavaleiro das Trevas II, está crescida. Mas apesar desse mundo estranho criado anteriormente por Miller, é surpreendente a sobriedade e o teor progressista dessa primeira história em relação ao restante da série.
A primeira cena mostra um jovem negro correndo da polícia, retomando a discussão da violência policial, em voga na mídia norte-americana após o assassinato de Michael Brown. Essas páginas também marcam a primeira aparição do Batman, contra os polícias, após anos. Agora, em conjunto com quadros de telejornais, característicos da narrativa de Miller, está também a repercussão da internet.
A equipe criativa é hábil em estabelecer os núcleos do enredo, mais pela dinamicidade do desenho de Kupert e das ideias de página de Miller do que pelos recordatórios já manjados do autor. O mundo deste Cavaleiro das Trevas, pelo menos ao que indicava essa primeira edição, é protagonizado por mulheres: a Mulher-Maravilha é a única dos heróis clássicos na ativa, Lara é talvez a pessoa mais poderosa da Terra, Gothan possui uma comissária e o ótimo desfecho da trama contribui para essa tese.
De início, a aproximação da narrativa policial, típica do coautor Brian Azzarello, e as poucas extravagâncias pareciam prometer um bom gibi. Uma história curta escrita e desenhada por Miller completa a edição (todos os capítulos terão uma, mas a cargo de outros artistas), que mostra o empenho do Capitão Átomo para libertar os cidadãos kryptonianos de Kandor, cidade minimizada e engarrafada assim como nas velhas histórias do Superman. O desenho de Miller é fortemente estilizado, em algumas partes soando interessante, mas na maior delas apenas preguiçoso.
A segunda edição começa com uma cena de fuga policial grandiloquente e empolgante, bem ao ritmo dos filmes de ação de Michael Mann. Mas eis que chega a sequência que modifica e compromete toda a série: o Capitão Átomo consegue finalmente extrair os kryptonianos da garrafa a tempo de perceber que fora manipulado por fanáticos religiosos que dizimaram a antiga Kandor.
Uma virada de roteiro ao mesmo tempo surpreendente e inevitável, lamentavelmente. Miller mais uma vez não consegue se dissociar da sua cruzada paranoica e a faz de modo vulgar e preconceituoso. A ligação é perceptível já no primeiro quadro pelas roupas: todos de preto, as mulheres cobertas até o rosto. Todo o bom alicerce da primeira edição é derrubado para dar lugar à “alegoria” de Miller. Os kryptonianos terroristas são representados pelas frases e ações mais estereotipadas e unidimensionais possíveis. Mas a falta de bom senso atinge seu ápice na frase “nem todos os kryptonianos são maus”, emulando uma postagem de rede social.
É difícil pensar o que poderia modificar o futuro da série, que tende a ser cada vez mais desinteressante e ofensiva. Miller jogou de lado a interessante história policial que vinha construindo – com a ajuda nos roteiros de Azzarello e o ótimo desenho de Kupert – para mais uma vez pregar contra os terroristas islâmicos. E mais uma vez de maneira artificial e preconceituosa.