Os coiotes em pele branca de cordeiro de Assassinos da Lua das Flores

Cena de Assassinos da Lua das Flores. Nela vemos, da esquerda para a direita, Mollie Burkhart, uma mulher de indígena americana, de cabelos pretos lisos e Ernest Burkhart, um homem de cabelos loiros e olhos azuis. Mollie veste um poncho de sua tribo na cor bege, com listras vermelho terra, preto e verde; uma camisa roxa, um colar em prata e um cachecol preto. Ernest veste um terno azul marinho, camisa cinza e gravata marrom. Eles estão sentados sobre uma mesa e Molly, na esquerda da imagem, olha para Ernest, que está olhando para cima. Ao fundo, uma cozinha de época com móveis em madeira e acessórios em porcelana e prata.
Uma das cenas mais esperadas do ano também é uma das mais lindas (Foto: Apple TV+)

Guilherme Veiga

“Fundamentalmente é algo que, por alguma razão, permanece. Algo que você pode ver anos depois ou 10 anos depois você irá ver e será diferente. Em outras palavras, há algo a mais para aprender sobre si próprio e sobre a vida”

Foram com essas palavras que Martin Scorsese definiu sua percepção sobre Cinema. Fatores como sua própria filmografia ou seu instituto The Film Foundation, responsável por restaurar mais de 1000 filmes, colocam o diretor como uma espécie de guardião vivo da Sétima Arte.

O próprio idealizador já afirmou que foram os filmes que moldaram sua percepção da vida enquanto criança, por isso, nada mais justo que florescesse nele o ímpeto por contar e eternizar histórias. Isso resultou em uma carreira ímpar, primorosa e incontestável, fazendo que somente Scorsese fosse a única pessoa possível para, desta vez, dar voz a toda a vivência de um povo através de sua nova obra-prima, Assassinos da Lua das Flores.

Cena de Assassinos da Lua das Flores. Nela vemos uma sala, com uma multidão de pessoas. Em sua maioria são homens brancos, velhos e engravatados. Há apenas duas mulheres na imagem, posicionadas no centro. Todos estão encarando a câmera e a sala está com pouca iluminação.
“Você consegue encontrar os lobos nessa imagem?” (Foto: Apple TV+)

O longa conta a história dos Osage, tribo nativo-americana que habitou grande parte do centro do país e, com o avanço do homem branco, teve seu território majoritariamente reduzido. O que acontece é que a área que sobrou para o povo – escolhida justamente por ser infertil, e assim, sem grandes disputas – se descobriu uma jazida de petróleo, e todos sabemos que a junção dos americanos brancos com esse combustível fóssil não resulta em boa coisa. A partir dessa descoberta, se desencadeou uma série de assassinatos inconclusivos com os nativos na década de 1920, que, após muito protesto, culminou na criação do FBI.

A julgar pelo contexto da história e da filmografia de Scorsese, é natural atribuirmos que o diretor tratasse esse recorte pela ótica da criação da organização federal. Porém é aqui que ele, mesmo no auge dos seu recém completados 81 anos, demonstra toda sua imensidão e jovialidade quando o assunto é Cinema. Assassinos da Lua das Flores de forma alguma foca no que seria mais tangível para a maneira como pensamos a sociedade em que vivemos. Pelo contrário, ele traz para si o discurso de formação estadunidense a partir do choque de quem realmente o formou, os Osage, aqui representando a diversidade de povos,  com quem os usurpou.

Dessa forma, o longa derruba por terra a balela do Destino Manifesto, fazendo com que essa busca por uma terra prometida, na verdade, seja uma invasão e tomada de territórios de maneiras que nem o Diabo poderia imaginar, e que, mesmo centradas no início do século XX, tangenciam para fora das telas. A obra se torna um tapa na cara, principalmente nesses tempos, por evidenciar o modus operandi que esse discurso aplica há séculos: sorrateiro, travestido de progresso e nefasto.

Cena de Assassinos da Lua das Flores. Nela vemos um grupo de seis indígenas Osage, todos homens com características indígenas. Todos estão cobertos por petróleo enquanto comemoram em um campo aberto.
O território Osage chegou a ocupar cerca de seis estados americanos; hoje se estende por menos de 6000 quilômetros quadrados no estado de Oklahoma (Foto: Apple TV+)

Nesse sentido, mesmo com um derramamento de sangue um pouco mais brando, pelo menos visualmente, é o filme mais violento de Scorsese. Isso se dá muito por conta de ser uma violência tão latente que nos acostumamos com ela, tanto no caso dos Osage, como também na tragédia de Tulsa, citada também na produção e igualmente esquecida. Porém, aqui, a agulha que sempre esteve próxima de nossa espinha começa a incomodar e nos trazer agonia. 

O cineasta trabalha tal mal-estar de diferentes formas: ele é de terror, no molde de ‘o inimigo não mora ao lado, mas junto’, do mesmo modo que Corra! replicou, mas sem ser terror; é um western, só que anti-western; é um filme de máfia também, sem replicar tanto a máfia como o diretor já demonstrou em projetos anteriores e também um filme de tribunal, em que o real julgamento ultrapassa as telas. Misturar tantos gêneros pode parecer perigoso, e é analisando esse aspectos que Scorsese se torna não a pessoa perfeita para contar essa história, mas a mais capacitada.

Tal aspecto fica muito evidente nas últimas cenas da obra, que apesar de serem divisivas, são brilhantes no contexto da narrativa. Já comum por aparecer em suas produções, Scorsese assume o discurso de mea culpa, ao mesmo tempo que traça uma crítica extremamente estilizada ao fanatismo cego por true crimes. O longa entende que, apesar do cuidado, aquela ainda é uma visão branca da história, e em um mundo onde o lugar de fala se faz presente e necessário, o diretor graciosamente ‘dribla’, no melhor dos sentidos, o politicamente correto e escancara que a tragédia permaneceu décadas escondida justamente pelo comodismo da sociedade branca. Assim, ele faz de Assassinos da Lua das Flores não só um olhar para os Osage, mas também para o remorso que habita adormecido em nós mesmos.

Cena de Assassinos da Lua das Flores. Nela vemos, da esquerda para a direita, Reta, Anna Brown, Mollie Burkhart, e Minnie. São quatro mulheres indígenas que têm em comum o cabelo longo e preto. Todas estão sentadas para tirar uma foto. Reta, Mollie e Minnie vestem um poncho com listras, enquanto Anna Brown veste um sobretudo preto com um vestido longo preto por baixo. A fotografia está em preto e branco.
O design de produção do longa é impecável e crucial para nos inserir na história (Foto: AppleTV+)

Todos os acertos de Assassinos da Lua das Flores se englobam, principalmente a partir do roteiro e a forma que ele traduz a genialidade de seu idealizador. O texto consegue pincelar o necessário de uma história cheia de pormenores e ainda sim a deixar densa, dentro do DNA da filmografia de Scorsese. Por isso, ele não se limita ao aprofundar o contexto, fazendo questão do espectador, cadenciadamente, se despir da posição de observador de uma cultura diferente e aos poucos se inserir no modo de vida dos Osage, na função de cada vez mais ir minando nossas diferenças para se criar uma forte empatia com os nativos, que combina demais com o clima de suspense da obra.

Através das várias camadas que a escrita de Martin em parceria com o lendário roteirista Eric Roth (Duna, Forrest Gump) atribuem, o longa vai aos poucos transmutando, entre suas três horas e meia, a ideia de Cinema Scorseseano. O diretor já afirmou que havia um esboço completamente diferente do filme e, percebemos como Assassinos da Lua das Flores entende que, tanto o cineasta como o público estavam imersos em um lugar comum. Ao decorrer da produção, percebemos o desvencilhar de sensos para voltar o olhar ao real problema.

Cena de Assassinos da Lua das Flores. Nela vemos William Hale, interpretado por Robert De Niro, um homem branco, idoso de cabelos brancos. William veste um terno bege, uma camisa branca, gravata preta, chapéu marrom e óculos de armação redonda e na cor preta. Ele está sendo filmado praticamente do ombro para cima e está em um carro de época, com uma paisagem borrada ao fundo. William levemente sorri para a câmera.
Robert De Niro vive William Hale, o personagem mais odioso da carreira do ator (Foto: Apple TV+)

O controle criativo do diretor sobre o longa resulta em um time extremamente afinado com as intenções da produção. Anunciado como o segundo projeto consecutivo de Scorsese que beira as três horas de duração, Assassinos da Lua das Flores certamente já nasceu divisivo, principalmente para quem já se sentiu atacado pelas declarações do vovôzinho, seja dentro ou fora das telas. Porém, o registro, sendo entendido como a exaltação da filmografia do realizador, ironicamente reúne os Vingadores da indústria.

O texto, por si só, já traz o dinamismo que a obra precisa, no entanto, o principal nome que faz com que a película não nos arrebate pelo tamanho e sim pela densidade é o da editora Thelma Schoonmaker. Ela esteve presente em incríveis 21 outros projetos do diretor, mas aqui faz deste trabalho sua magnum-opus, sabendo quando deve cadenciar a história para que ela própria se sustente e quando deve adicionar ritmo, fazendo com que as 3 horas e 26 minutos mal sejam sentidas.

Ainda por trás das câmeras, Rodrigo Pietro, novato em parcerias com Scorsese, brilha. Diferente de seu outro sucesso do ano, Barbie, em que a fotografia extremamente carregada do filme de Greta Gerwig cria o choque entre mundo real e ficcional, aqui ele abusa de uma composição de imagem mais branda e contemplativa, que nos coloca dentro da dimensão de todo o acontecimento. Completando o time dos sonhos, Robbie Robertson tem outras seis parcerias com o diretor e novamente transforma sua trilha em quase uma figurante, que está bem lá no fundo, soturna, se esgueirando pelas colinas e marcando o suspense crescente. Robertson, infelizmente não pode conceber a magnitude de seu trabalho no épico, pois faleceu em Agosto, dois meses antes da estreia de Assassinos da Lua das Flores.

Cena de Assassinos da Lua das Flores. Nela vemos, da esquerda para a direita, Mollie Burkhart, William Hale e Ernest Burkhart. Mollie veste uma roupa típica que se assemelha a um uniforme de fanfarra, que intercala as cores vinho e dourado, mas com as mangas pretas. A roupa tem franjas nos ombros e nas partes em dourado. William veste um terno em um bege bem claro, um colete da mesma cor, uma camisa branca, uma gravata marrom e óculos redondos na cor preta. Ernest veste um terno preto, colete na mesma cor, camisa branca e gravata borboleta de listras bege e vinho. Mollie olha para Ernest com um leve sorriso, enquanto William e Ernest olham para frente. Ao fundo, folhas de uma árvore.
Se Scorsese é Deus; De Niro, DiCaprio e Gladstone poderiam facilmente ser a santíssima trindade (Foto: Apple TV+)

Quem realmente personifica a caminhada do diretor no Cinema está à frente das telas. Para quem já acompanha a carreira de Scorsese, além da assinatura, estilo e maneirismos que ele imprime em seus filmes, outro aspecto torna a identificação extremamente fácil: o elenco. Existe sim uma rotatividade ao longo da filmografia, mas dois chamam atenção, além de simbolizarem dois momentos da vida do idealizador, que em Assassinos da Lua das Flores, se encontram para exaltá-lo.

De Niro, hoje já veterano do Cinema, viu sua carreira florescer junto com Scorsese e a nova obra marca a décima primeira parceria com o diretor. Já conhecido pelo papel de anti-herói nessa amizade, dessa vez encarnando William ‘King’ Hale, o ator vai pelo caminho contrário e mergulha em um vilão desprezível que, graças a facilidade do ator em transmitir expressões de forma serena, exemplifica fielmente a dualidade que o homem branco assumia para os nativos americanos naquela época. DiCaprio, por outro lado, que representa a pegada moderna do cineasta e conta com seis filmes assinados pela lenda no currículo, entrega seu papel mais complexo, trabalhoso e talvez o melhor executado da carreira. Na persona de Ernest Burkhart, o ator passeia entre os extremos de um anti-herói ingênuo e cativa o espectador, seja para bem ou para mal.

Porém, Assassinos da Lua das Flores também amplia o leque de atores no qual o diretor e roteirista trabalha. Jesse Plemons retorna depois de O Irlândes e se coloca como um dos nomes mais disputados das produções daqui pra frente. Brendan Fraser (A Baleia) estreia com o Scorsese e rouba a cena no pouco tempo de tela que tem, assim como Cara Jade Myers, estupenda no papel de Anna Brown. Mas quem realmente dá a cara tanto para o projeto como para a intenção do idealizador de inserir atores nativos americanos é Lily Gladstone. Sua interpretação no papel de Molly Burkhart pode ser definida pela palavra pontualidade. Gladstone tem uma consciência sobrenatural de saber quando se comunicar através da força de suas palavras ou quando deixar o silêncio e sua forte expressão gritarem o que a personagem guarda dentro de si.

Cena de Assassinos da Lua das Flores. Nela vemos Ernest Burkhart, um homem branco de cabelos loiros e Mollie Burkhart, uma mulher indigena de cabelos pretos longos. Ernest veste um terno cinza e uma calça social cinza e Mollie uma vestimenta indígena na cor branca com detalhes em salmão. Os dois estão no centro da imagem, com Ernest um pouco para a esquerda e Mollie um pouco para a direita. Atrás de cada um, nos cantos da imagem, há carros de época. Eles estão se encarando, no meio de um campo de trigo. Ao fundo, uma árvore.
Assim como as últimas obras do diretor, Assassinos da Lua das Flores promete ser figura de destaque nas premiações, inclusive já fazendo presença no Globo de Ouro, com sete indicações (Foto: Apple TV+)

Todo cineasta é um diretor, mas nem todo diretor é um cineasta. E Scorsese pode ser uma das poucas pessoas para qual se pode atribuir as duas nomenclaturas, e é com Assassinos da Lua das Flores que essa diferença de significados fica claro. Um diretor, ao pé da letra, somente transpassaria o já denso texto da literatura para a tela. Já o idealizador, com sua carga de Cinema de autor muito presente, complementa o texto na tela, dosando milimetricamente o escrito do visual. Por isso, não importa qual palavra você escolha para enquadrar Martin Scorsese, ele será genial e um dos maiores da história em qualquer definição.

A obra, para além de ser um exercício necessário de trazer à tona a história dos Osage, também serve para fincar o nome do diretor na história. Nos seus mais de 50 anos de carreira, caso em algum momento tenha existido alguma desconfiança da importância dele para a indústria, é com Assassinos da Lua das Flores que todas as dúvidas se tornam inexistentes. Se a Sétima Arte é definida por ele mesmo como algo que permanece, tanto o filme como o legado de Scorsese permanecerão pela eternidade.

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