Henrique Marinhos
As Primas é um romance de formação, que narra a irmandade das primas Yuna, Petra e Carina, que crescem em uma família disfuncional e marginalizada na cidade argentina de La Plata, nos anos 1940. Publicada originalmente em 2007, quando Aurora Venturini tinha 85 anos, a obra recebeu vários prêmios literários na Argentina e no exterior. Destacando-se pela linguagem radical e excêntrica, que mistura diferentes registros, gírias, estrangeirismos, neologismos, erros gramaticais e ortográficos, criando um estilo único, original e cativante, o trabalho foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Março de 2023.
Explorando os limites da narração nas questões de gênero e classe, a autora mostra as contradições e as injustiças da sociedade argentina da época. As personagens femininas são o centro da obra, retratadas como seres marginalizados, oprimidos e violentados pela sociedade patriarcal e machista. No entanto, elas também demonstram uma força e resistência admiráveis nas situações mais perversas e desconfortáveis. Não se conformam com o destino que lhes foi imposto e buscam formas de se expressar e de se afirmar com suas armas, sejam elas a Arte, a astúcia, a rebeldia ou a vingança.
Um aspecto interessante de Las primas (no original) é a forma como a autora constrói suas personagens femininas. As primas Yuna Riglos e Petra, assim como as outras mulheres da família, sofrem com a pobreza, a ignorância, a exploração, o abuso e a discriminação devido às suas deficiências físicas ou mentais. Mesmo vitimadas pelos próprios familiares, que as tratam com desprezo, indiferença e crueldade, elas mantém a potência e singularidade em toda a narrativa.
Eu era uma menina diferente das outras porque tinha nascido com um defeito na cabeça que me fazia ter dificuldade para falar e entender as coisas. Por isso as pessoas me olhavam com pena ou com nojo. Mas eu não me importava com isso. Eu sabia que eu era especial e que tinha um dom para a pintura. Eu pintava coisas lindas que ninguém mais podia ver” (p. 13).
A obra, que chegou ao Brasil em Setembro de 2022 pela editora Fósforo, provoca estranheza, piedade, repulsa e riso, mas também admiração pela maestria narrativa de Venturini. No livro, a autora cria um universo ficcional rico em detalhes, que revela contradições e injustiças, ao mesmo tempo que nos transporta àquela realidade. Com a ambiguidade de suas dores e principalmente humor, a trajetória de Yuna é contada desde a infância até a idade adulta, passando por episódios trágicos e cômicos que envolvem sua mãe, sua irmã, suas primas, seus tios e seus amores.
Em alguns aspectos temáticos, estilísticos e culturais, é possível relacionar a obra de Aurora Venturini com a de Pedro Almodóvar, um dos mais influentes e originais cineastas contemporâneos. O diretor espanhol é conhecido por filmes que abordam o amor, o desejo, a identidade, a sexualidade e a família, com um estilo marcado pela estética colorida, pelo humor ácido e pela ironia.
As semelhanças ocorrem, principalmente, através da presença de personagens femininas fortes, complexas e marginalizadas, que questionam os limites das convenções sociais. Expressando-se através de uma linguagem radical, Venturini usa a ironia ácida e a violência como forma de lidar com as situações trágicas e cômicas atribuídas às personagens.
A tradução de Mariana Sanchez é sensível e precisa, captando o tom irônico e sarcástico da voz original de Yuna, que oscila entre a inocência e a crueldade, entre a ternura e o desprezo. A tradutora também respeita as escolhas estilísticas da autora, que usa uma pontuação peculiar e um vocabulário rico em regionalismos e neologismos.
“Eu queria me chamar Maria, como a minha mãe, ou Nené, como a minha prima mais velha, que era linda e inteligente e tocava piano. Mas eu não podia escolher o meu nome e nem o meu rosto. Eu tinha que me conformar com o que me tinham dado”. Nesse trecho, pode-se observar como a tradutora preserva o estilo da autora argentina, que usa frases simples e diretas, sem muitas variações. Ela mantém, principalmente, o tom confessional e infantil da narradora, que se apresenta ao leitor com muita sinceridade.
A personalidade de Yuna, no entanto, é complexa e contraditória: ela tem uma sensibilidade e uma criatividade extraordinária, que a fazem pintar coisas lindas. Ainda assim, é inocente e ingênua, e não compreende bem o mundo ao seu redor. Ela é curiosa e ávida por aprender, usando o dicionário como fonte de conhecimento e expressão. A personagem também é sincera e direta, dizendo o que pensa sem filtros ou rodeios – uma pessoa forte e resistente, que não se deixa abater pelas adversidades e convenções de decoro. “Eu não gostava da minha prima Nené. Ela era gorda, feia e burra. Ela não sabia fazer nada direito. Ela só sabia tocar piano, mas isso não era arte de verdade” (p. 121).
Petra, por sua vez, é uma personagem ambígua e complexa, que oscila entre a crueldade e a solidariedade, amor e ódio, lealdade e traição. Ela é a principal antagonista de Yuna, mas também sua confidente e protetora. Petra se autodenomina liliputiane, um termo encontrado para se referir às pessoas pequenas como ela. Ela usa essa expressão como forma de se afirmar e de desafiar os preconceitos da sociedade. Petra é a principal responsável na influência dos pensamentos de Yuna acerca de política, religião, sexo e Arte. É Petra, inclusive, que ajuda Yuna a enfrentar os abusos e as violências que sofre na família e na escola.
As Primas se encerra com a consolidação de uma narradora singular e original criada por Aurora Venturini, que nos conta sua história desafiando as normas gramaticais e ortográficas. Yuna nos mostra seu próprio mundo de imperfeições e de diferenças, mas também de beleza e de esperança. Com essa voz inconfundível, Venturini nos apresenta um universo ficcional rico em detalhes, que revela as contradições e as injustiças da sociedade argentina – e não só.