Jamily Rigonatto
“Poucas pessoas vão acreditar neste relato. Às vezes seria preciso mentir para que as pessoas admitissem a verdade; esta triste reflexão eu fazia na infância por razões fúteis; agora as faço por questões transcendentais.”
O que delimita a linha do absurdo? Em que momento fomos ensinados a ler algo e dizer o quanto aquilo é distante do lógico? São respostas presas ao inconsciente, o tipo de habilidade praticamente instintiva na mentalidade humana. Mas é lendo Silvina Ocampo e sua audácia singular que essas fronteiras parecem se diluir sem precisar de muitas páginas. Em As convidadas – livro publicado pela Companhia das Letras em Maio de 2022 –, a mente e o mundo são peripécias capazes de causar desconforto arrebatador e crença no irreal.
A autora argentina teve sua obra publicada postumamente no Brasil, sob a tradução de Livia Deorsola, e, se em A Fúria e outros contos, de 2019, as coisas de seu universo particular já tomavam rumos curiosos, dessa vez isso se intensifica. Nos 44 contos que compõem a obra, somos apresentados ao rotineiro metamorfoseado, como se aquela ida diária à padaria te levasse diretamente para Marte e a diferença fosse notada tarde demais. Os personagens são diversos, partindo de crianças a casais que protagonizam situações absolutamente inusitadas.
É na escrita que tudo se mistura. O leitor se sente chocado, mas ao mesmo tempo é apresentado a isso com uma narrativa trabalhada com naturalidade. A estranheza das coisas nunca são destacadas no texto, pois no mundo de Ocampo o extraordinário é tão comum que nos faz sentir culpados pelas reações escandalizadas. Mesmo trabalhando com histórias não complementares de pouco mais de uma página, o fantástico vive em linhas tênues.
As histórias de As convidadas não precisam se ligar para ter pontos em comum. Tudo caminha em linhas retas, mas se desenrola em redemoinhos. Os inícios comuns culminam em facetas trágicas e conflitantes. Em muitos momentos, a autora brinca com as reações psicológicas a ponto de criar medo. É o caso do conto Carta debaixo da cama, no qual, conforme as palavras vão sendo escritas, somos capazes de experimentar o desespero da protagonista; o corte brusco dispensa detalhes do fatal para ser assustador.
Além de brincar com nossos cérebros, Silvina nos dá acesso ao dela. Os períodos longos e pouco pontuados integram narrativa ao pensamento. Por isso, as histórias perdem contexto de tempo ou momento. É como se tudo estivesse sendo noticiado no jornal da noite e a ambientação temporal ficasse meramente em segundo plano. O fantástico é o verdadeiro protagonista.
Assim, tudo nos é suscitado, como elementos inseridos com o propósito de causar impacto enquanto criam questionamentos e reflexões. É a construção do absurdo se tornando razoável. Aqui, a escritora atua como uma telespectadora esperando as reações ao seu redor. E ela é muito bem sucedida em tirar expressões ímpares dos rostos que a leem. Afinal, é impossível ser blasé diante de construções tão simbólicas e excepcionais.
“Não foi senão depois de um tempo e de um detalhado estudo que distingui, na famosa fotografia, o quarto, os móveis, a cara borrada de Valentín. A figura central, nítida, terrivelmente nítida, era a de uma mulher coberta de véus e de escapulários, já um pouco velha e com grandes olhos famintos, que se revelou ser Pola Negri.”
As convidadas nunca se propôs a fechar ciclos; é direito de quem contempla a obra acreditar ou não no que está sendo exposto. A magia mora exatamente na falta dos limites de início, meio e fim. O próprio conto que dá nome ao livro deixa espaço para interpretações, visto que é difícil definir se as convidadas são apenas fruto de traquinagem infantil ou figuras de um plano metafísico. Isso no caso de se tratar de uma criança, pois as idades nunca são claramente definidas e cabe a nós entender da forma que nos for adequada.
É interessante consumir o texto e ver como os tons assustadores e emblemáticos cabem em espaços tão curtos. Alguns contos têm menos de duas páginas e conseguem estabelecer a linearidade invadida pela surpresa perfeitamente. Personagens que nem sequer tem nome, mas entregam pedaços de suas essências em nossas mãos. Uma conexão curiosa perpassando as fronteiras físicas.
Tudo foge do comum, mas ainda mantém como temática principal o ser humano. A escrita trabalha com elementos da espiritualidade e transgride também na Cultura. Muitos contos envolvem questões religiosas, cultos, crendices e simpatias em sua composição. Esse tipo de citação contribui para que o hiperbólico faça tanto sentido quanto a religião e seu valor concreto na sociedade.
Ainda na ideia de explorar camadas da humanidade, os acontecimentos do cenário incomum levam as pessoas a mostrarem suas verdadeiras faces, já que muitas das histórias tem fundo na perversidade das motivações. Desejos por doenças, mortes, acidentes e outras tragédias são figuras recorrentes nos enredos, à forma com a qual esse contexto sincero também molda uma reflexão sobre as partes desconcertantes que todos tem, mas escondem a qualquer custo.
“Talvez eu tenha me arrependido. O Pata de Cão não pertencia a minha família. Para que o sacrificar?
Quisemos tirar o boneco de dentro da panela. Queimamos as mãos no vapor. Quando conseguimos tirá-lo, não sobravam nem pernas, nem pés, nem cabelo, nem rabo de centauro.”
As convidadas diz muito sem precisar ser claro. Entre eventos completamente insólitos e pessoas absolutamente comuns, a vida é testemunhada sob tantas formas que isso sim parece genuinamente mágico. Silvina nos prende em seu locus literário e essa falta de liberdade nos dá asas para voar distantes de uma rotina mediana; talvez sejamos como as crianças que voaram antes da queda soturna.
Somos entregues a muito mais do que as 261 páginas são capazes de contar. O mundo aos olhos da autora é tão especial que foge de quaisquer comparações palpáveis. Do amor à morte há um número infinito de possibilidades e ter a chave da porta de entrada para acessá-las sob os olhos da escritora é uma experiência inominável. Restam agradecimentos: ser convidada nunca foi tão esplêndido.