As Boas Mulheres da China é o retrato universal de uma realidade penosa

As Boas Mulheres da China, publicado em 2007 pela Companhia das Letras, é marcado pelo caráter de denúncia que muitas das obras de Xinran compartilham (Foto: Reprodução)

Bianca Penteado

No processo de consumo cultural e midiático, temos a tendência de acatar meias verdades sobre um cenário ou de deixar de lado os cotidianos pouco destacados. Há 26 anos, essa era a realidade chinesa. Enquanto assistíamos a seriados de sucesso como Friends (1994) surgirem na TV, com mulheres independentes em uma cidade grande e moderna, esquecíamos-nos de uma China que, no Oriente, se encontrava em uma situação oposta. O atraso e o choque proporcionados pelos anos antecedentes ainda tinham participação ativa na sociedade. Esse pano, sujo do sofrimento e do resto de pólvora carregados, principalmente, pela Revolução Cultural Chinesa, é o que serve de fundo para As Boas Mulheres da China (2002).

Em meio a tantas regras e censuras, Xinran ambiciona compreender a condição feminina na China moderna. Encontrando forças para isso em seu programa de rádio Palavras na brisa noturna – um espaço minúsculo no qual as mulheres podiam desabafar e pedir conselhos –, a jornalista-autora escreve seu livro-reportagem. Narrando as experiências vividas por suas ouvintes e entrevistadas ao mesmo tempo que conta sua própria história, descobri em As Boas Mulheres da China uma reflexão feminista de âmbito mundial.

Xinran ficou conhecida como a jornalistas que “ergueu o véu das mulheres chinesas”, graças ao seu programa de rádio (Foto: Reprodução)

A construção da obra é o que dá seu destaque. Pelo ponto de vista feminino, remontamos a vida em um país ainda escondido sob uma cortina de fumaça. As lembranças inflamadas pelo governo de Mao Tsé-Tung e pelo comunismo chinês, além das sequelas deixadas pelo período de reeducação, marcam muitos dos relatos. Ao mesmo tempo, acompanhamos histórias recentes de jovens que nada tiveram a ver com tudo isso. A coletânea é um vai e vem temporal, e é isso que perturba. A mudança de ano não é acompanhada pelo comportamento social. Os problemas sofridos pelas mulheres permanecem os mesmos.

Xinran descreve cada detalhe como se estivesse em nossa frente, não nos poupando da verdade nua, crua e, às vezes, cruel. E nós, não só como leitores, mas também como indivíduos que se encontram dentro de uma realidade particular, acompanhamos a obra com um abalo inevitável. A leitura, no entanto, não é amarga. A entonação expositora conduz o livro para um sabor agridoce. A jornalista não mostra apenas dor, mas também sua superação, de modo a nos fazer pensar sobre nossa própria condição de mulher, independentemente da idade, classe social e até do hemisfério em que vivemos.

Mulheres Chinesas em Dali, na província de Yunnan (Foto: Daniel Frauchiger)

Mulheres tão singulares e, contudo, histórias tão plurais. Em As Boas Mulheres da China, encontrei um estudo sobre uma repressão emocional e sexual, e uma análise sobre a existência de “mulheres boas” que vai de encontro à visão daqueles que nos classificam. Escolhi escrever a respeito dessa obra com a razão única de tentar expressar a realidade quase caótica na qual me encontrei após a leitura. Onde, embora em países diferentes e, portanto, com culturas e padrões diferentes, nós, mulheres, ainda vemos como as esferas da vida feminina são afetadas pela forma como somos vistas e tratadas pela sociedade. 

A história do mundo é muito longa, mas a oportunidade das mulheres se tornarem elas mesmas não é tão antiga quanto deveria ser. As Boas Mulheres da China conta com 15 capítulos, cada um dando voz a uma protagonista diferente. Sentimos, intimamente, as mesmas dores e frustrações e, por isso, faço ainda uma ressalva importante: o livro é bom, mas não o recomendo para todos. Retratando situações-gatilho como abusos morais e físicos, ele desenterra memórias que, provavelmente alguns dos leitores, buscam tanto esquecer. 

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