Davi Marcelgo
Desde Sally (Marilyn Burns) de O Massacre da Serra Elétrica (1974) até Grace (Samara Weaving) de Casamento Sangrento (2019), a final girl é praxe no Terror, principalmente no slasher. É ela quem vence o assassino, sobrevive e, de quebra, aparece nas continuações. Mas para Christine Brown (Alison Lohman), do grotesco Arraste-Me para o Inferno (2009), já faz 15 anos que ela está perpetuada nos confins da Terra. O aniversariante que não é um filme de mascarados empunhando facas, sem dúvidas garante uma curiosa discussão sobre mulheres no gênero.
O recorte de classe também é uma temática já perpassada pelo horror e, neste longa, também é comentado. Morto Não Fala (2018) e Alien, o Oitavo Passageiro (1979) são ótimos exemplos de como o mal age em corpos marcados por alguma razão de exclusão – no caso do filme de Ridley Scott, gênero e cor também fazem parte das discussões que o diretor propõe. Nele, os dois últimos personagens a morrer são um homem negro e uma mulher branca, ambos operários. A final girl, logicamente, é uma mulher. Ripley, sobrevivente, segue protocolos, normas e diretrizes de segurança durante toda história; o irônico é que, para sobreviver na realidade, mulheres e outras minorias também precisam seguir ‘regras’.
Sam Raimi, escritor e diretor, já tinha subvertido expectativas com o inaugural Evil Dead (1981), finalizando-o sem as esperanças de um amanhecer que traz tranquilidade após uma noite alucinante. Considerando os finais de filmes anteriores dirigidos por Raimi ao terror de 2009, era de se esperar conclusões impactantes, afinal, Homem-Aranha 2 e 3 encerram com sentimento agridoce. Com a história de Chris Brown não foi diferente: após o roteiro enganar os cinéfilos com uma falsa libertação da personagem contra seus demônios, ela é arrastada para o inferno. Na trama, Brown precisa conseguir uma promoção em seu emprego de bancária, para isso, ela recusa o aumento dos prazos para o pagamento das prestações da casa de uma senhora. Revoltada, a cliente a amaldiçoa com poucos dias de vida.
Os personagens já escritos e dirigidos pelo cineasta possuem semelhanças, por exemplo, assim como o trio de Um Plano Simples (1998), Peter Parker e Brown estão ligados pela falta de dinheiro. A only girl de Arraste-Me para o Inferno não só convive com a grana curta, mas também é oprimida pela família de seu namorado, Clay (Justin Long), que tem uma excelente condição financeira. Opressão condicionada inclusive no ambiente de trabalho, ao competir com um colega por um novo cargo, com a garantia de mais renda e status do ponto de vista da sogra.
O terror vivido por Chris Brown ultrapassa qualquer espírito ‘zombeteiro’ que arremessa panelas em sua cozinha. Começando antes mesmo da praga ser lançada sobre ela, estando presente no recorte social: mulher e pobre. Brown é incentivada a competir com alguém da mesma classe, uma lógica do capitalismo, além de ser incentivada a não ajudar uma senhora também pobre, quando podia fazer isso, sendo castigada pelas suas atitudes. Em uma sociedade patriarcal, ser mulher é estar nessa posição de ganhar menos que o namorado e ter que provar sua capacidade para homens em situações de poder, que vão a legitimar ou não. Vítima do sistema, a protagonista é penalizada sem qualquer análise das motivações durante a vida.
Em paralelo, no final da terceira temporada de The Good Place (2016-2020) é descoberto que, há mais de 500 anos, ninguém entra no bom lugar (céu), porque realizar uma ação intrinsecamente boa é uma tarefa difícil na contemporaneidade. De repente, comprar uma simples peça de roupa financia indiretamente tráfico humano ou adquirir uma fruta implica no apoio de indústrias alimentícias que expulsam famílias de suas terras. No caso de Chris Brown, ela não realizou uma ação boa, foi apenas para seu próprio benefício, mas assim como a humanidade da série citada, ela é vítima.
Neste caso, não é tão certo que Sam Raimi e seu irmão Ivan Raimi, que assinam o roteiro, estejam fazendo alguma crítica quanto ao capitalismo ou religiões punitivas, talvez, eles só estejam reproduzindo elementos do Terror sem nenhum tipo de recorte. Porém, na trilogia do aracnídeo, diferente do que muitos autointitulados ‘nerds’ pensam, a personagem Mary Jane (Kirsten Dunst) está longe de ser interesseira e infiel. O diretor sempre pensa em texto e encenação com muita delicadeza, exemplo é a cena de Homem-Aranha 3 (2007) em que ela se sente mais uma em meio a multidão. Raimi também sempre deixou com transparência o relacionamento abusivo com o pai, que leva a ruiva a ter certos comportamentos. Por isso, é possível estender a análise para uma crítica consciente ao capitalismo e seus operários.
Sites e espectadores via Reddit já comentaram que o filme faz uma alegoria a transtorno alimentar. Realmente, Chris Brown vomita e é alvo de vômitos sobre seu corpo ao longo do filme, passa por vitrine de doces e outras cenas que envolvem comida. Ademais, há uma citação sobre ela ter perdido peso e uma fotografia dela, alguns anos antes, posando ao lado de um porco. Dessa forma, outra camada de opressão é adicionada à história: adequação aos padrões estéticos.
Seja porque supostamente pecam contra a castidade, bebem ou aproveitam a juventude, é válido questionar o que já foi e é indagado no gênero e no Cinema: por que mulheres são mortas com tanta violência? Mas não pensando em como a Arte é um mal que deseja a morte de pessoas e, sim, como de fato é um espelho do contexto social em que estamos inseridos. Para sobreviver, Brown tem de se adaptar às regras das corporações, à etiqueta da família do namorado e também aos padrões de corpo. O verdadeiro terror, este não cartunizado como os outros do filme, é a injustiça de um sistema e de crenças justapostas contra um corpo feminino e pobre.