Gabriela Reimberg
É impossível falar de Aquarius sem mencionar o caótico frenesi que atravessava a política brasileira em seu ano de seu lançamento. A narrativa de aversão à esquerda, predominante na mídia, recebeu mal o filme quando, em maio de 2016, no Festival de Cinema mais importante da Europa, o elenco tomou a iniciativa de protestar contra o impeachment ilegítimo que levou Michel Temer à presidência. “Assim que Aquarius estrear no Brasil, o dever das pessoas de bem é boicotá-lo”, dizia uma matéria da época. Foi no berço desse borbulhante caldeirão de reacionarismo que o segundo longa de Kleber Mendonça Filho veio ao mundo.
Apesar da recepção hostil em casa, Aquarius foi, talvez, um dos filmes brasileiros da última década mais consagrados no exterior. Com temas que transpassam barreiras linguísticas e culturais – ora de forma pragmática -, como os abusos do capital e a desigualdade social – ora de forma subjetiva -, como a memória e os laços com o passado, Aquarius é sobre angústias que afligem a todos nós.
Ambientada em Recife, a trama acompanha a história de Clara, representada pela fascinante Sônia Braga, uma jornalista aposentada que se recusa a sair de seu charmoso apartamento na praia de Boa Viagem, no edifício Aquarius, onde passou toda a sua juventude. Sendo a única moradora ali residente, Clara se vê pressionada pelo insistente Diego, interpretado por Humberto Carrão, representante de uma construtora que pretende tombar o prédio para empreender um condomínio de luxo.
É a clássica relação de vilão-herói. O personagem ambicioso de Diego personifica o capital especulativo que, no espaço urbano, transforma tudo em concreto. Já Clara é a politizada protagonista que luta até o final para defender seus valores. Apesar do relacionamento conflituoso, entretanto, os dois pertencem à mesma classe abastada de Recife e têm muito mais em comum do que a gente imagina. Enquanto Diego não esconde sua presunção de filho herdeiro, que estudou nos Estados Unidos, Clara parece não querer pertencer a essa casta: mesmo sendo dona de cinco outros imóveis, ela insiste em morar no antigo Aquarius e levar uma vida modesta. É a contradição da elite que não se enxerga como tal.
Kleber aborda de forma sutil, quase microscópica, essas relações de classe. Em uma reunião com os irmãos, Clara revira os álbuns de fotos da família e encontra um punhado de imagens em que a ex-empregada, Juvenita, aparece ao fundo, como figurante, cuidando das crianças. Ela se lembra perfeitamente de suas habilidades na cozinha, mas não de seu nome. Esse apagamento de identidade também é simbolizado na figura da atual empregada, Ladjane (Zoraide Coleto), uma senhora de idade que mora na periferia de Recife e, ao contrário da protagonista, não teve o privilégio de desfrutar de sua aposentadoria despreocupadamente. Embora o filme pinte a relação entre Ladjane e Clara como amistosa, é possível perceber que existe uma hierarquia de patrão e empregado muito bem delimitada entre as duas, causando um quê de desconforto ao telespectador.
É aqui que o diretor se destaca no Cinema nacional. Ao atribuir falhas tão particulares aos seus personagens, Kleber consegue denunciar as anomalias éticas da sociedade brasileira sem precisar apelar ao panfletário e ao caricato. A personagem de Sônia Braga é o puro suco dessas falhas. Ainda que ela se sobressaia por sua feminilidade e personalidade ímpares, Clara é cheia de defeitos: é chata, arrogante, inconveniente, esnobe e muito – mas muito – pedante. Mais do que isso, ela é o retrato fiel de uma pequena burguesia metida à besta que luta contra uma forma de opressão – a especulação imobiliária -, enquanto pratica outra – a exploração por meio do trabalho doméstico.
Quanto aos conflitos subjetivos, Aquarius também acerta em cheio. Para quem assistiu Bacurau (2019), o mais recente filme do diretor pernambucano, é notável o vínculo entre as tramas. A personagem de Sônia Braga é a amálgama da cidade de Bacurau: ambos resistem à tentativa de aniquilação de suas histórias. Além disso, o vínculo afetivo do ser humano com o espaço, seja ele urbano ou não, é uma temática presente nas duas obras.
Falando em espaço, é interessante observar como Kleber brinca com a trilha sonora, logo no início do filme. Ao som de Taiguara, somos introduzidos à uma Recife em preto e branco, com um ar saudosista, ainda em processo de urbanização. “Trago em meu corpo as marcas do meu tempo”, diz a música. É como se a cidade estivesse falando com a gente. E, de fato, a cidade é personagem em Aquarius: ela representa a troca do velho pelo novo.
Já o apartamento de Clara é um ponto fora da curva. Entre discos de vinil, livros e álbuns de fotos, onde a saudade e a melancolia se emaranham docemente, o apartamento é um museu de memórias imateriais e materiais. Em um mundo cada vez mais permeado pela cultura do efêmero, onde o consumo excessivo e a obsolescência programada reinam, Aquarius busca mostrar que o espaço, e os objetos, têm um valor sentimental uno – quase sacro.
Mas, calma! Embora o longa aborde temas tão universais e inerentes ao ser humano, não é todo mundo que consegue digeri-lo bem. As duas horas e meia de duração, com uma fotografia pouco dinâmica, diálogos arrastados e cenas de silêncio absoluto, Aquarius, para algumas pessoas, pode acabar virando aquele filme que a gente deixa rolando em segundo plano enquanto tira uma sonequinha no sofá. É preciso ter sensibilidade e capacidade de mergulhar nas emoções e nas sensações que a obra provoca.
No fim, a única conclusão certeira é que temos aqui uma saborosa história de superação. Cinco anos depois, é possível assistir ao filme e tirar as mesmas lições que qualquer outra pessoa em 2016 poderia ter feito: a especulação imobiliária é predatória, os ricos são hipócritas, as rugas são virtudes e a cidade é um espaço de trocas fraternas. Agora, mais importante que isso, é saber que, mesmo depois de tanta demagogia e reacionarismo, para o desgosto do cidadão de bem, Aquarius conseguiu se consolidar como um clássico contemporâneo do Cinema brasileiro. Não é que o tempo realmente cura tudo?