Enrico Souto
Uma característica não muito sutil do roteirista Aaron Sorkin é seu longo interesse em narrativas históricas. Assinando textos desde o drama esportivo de Moneyball até a trama tecnológica e psicodélica de A Rede Social – responsável pelo seu único Oscar, em Roteiro Adaptado –, era de se esperar que, ao cineasta decidir se arriscar na cadeira de direção, esse padrão continuasse em voga. Assim, depois de dois filmes com recepção razoável, ele aposta no mais apelativo dos Oscar bait e dirige uma cinebiografia irremissivelmente metalinguística. Apresentando os Ricardos, no caso, se insere no anos 50, dentro dos bastidores da série I Love Lucy, a mais relevante e disruptiva sitcom da História da Televisão americana, comentando, no processo, o próprio funcionamento de um seriado.
Antes do novo longa, as empreitadas de Sorkin como diretor ocorreram no morno Molly’s Game, de 2017, que teve retorno positivo de crítica e conquistou espaço no Oscar em Melhor Roteiro Adaptado. Já em 2020, a Netflix fez uma campanha massiva para divulgar o aclamado Os 7 de Chicago, resultando em seis indicações na premiação, incluindo Melhor Filme. No entanto, apesar do sucesso de seus dois primeiros longas, Sorkin falhou em conseguir uma indicação em Melhor Direção e, migrando agora para o Amazon Prime Video com Apresentando os Ricardos, foi ainda mais esnobado.
Mesmo com a sua presença marcante em outras premiações, a principal aposta do Prime Video para o Oscar 2022 perdeu a relevância e ficou em segundo plano entre os outros competidores. As únicas categorias em que foi citado foram as de Melhor Ator Coadjuvante para J. K. Simmons – por seu papel como William Framney –, e Melhor Atriz e Ator, para Nicole Kidman e Javier Bardem, respectivamente. E, realmente, os dois últimos são os holofotes de Being the Ricardos, como é chamado originalmente. Ambos vencedores do Oscar, protagonizam a narrativa na pele de Lucille Ball e Desi Arnaz, o casal icônico da TV, responsáveis por encarnar Lucy e Ricky Ricardo em I Love Lucy. Porém, fora dos televisores de 60 milhões de estadunidenses, seu relacionamento era complicado e turbulento.
A história se passa em um período delicado do século XX. Em meio a paranoia da Guerra Fria, o Macarthismo passava por seu auge nos anos 50 e se instaurava uma caça às bruxas contra a esquerda no país. O senador Joseph McCarthy – que dá nome ao movimento – liderou uma controversa campanha que punia supostos comunistas no governo e em outras instituições, como a própria Hollywood. Diversos artistas e expoentes da cultura foram marcados nessa lista condenatória, quando ficavam com o nome sujo, eram detidos e perdiam toda a sua carreira. À pedido de seu avô, Lucille Ball se filiou ao Partido Comunista em 1936 e, apesar de nunca ter se engajado politicamente, foi vítima dessa perseguição 20 anos depois.
Apresentando os Ricardos se inicia no momento em que, depois de inocentada pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, Lucille é exposta em plena rádio nacional, colocando em risco a continuidade do programa. Porém, aquela semana guardava ainda mais surpresas. Em paralelo a esse colapso, espalhava-se pelos tabloides um suposto caso de traição de Desi que, embora negasse veementemente, colocava em cheque a fidelidade e integridade do casamento. E, ao mesmo tempo, Lucy ainda descobria uma gravidez inesperada, enlouquecendo toda a sala de roteiristas da série, já que, naquela época, era terminantemente proibido qualquer alusão sexual na Televisão, o que incluía também menções a gravidez.
Fato é que essas tensões efetivamente se desenrolaram na vida real. Lucille Ball foi acusada de ser comunista, ficou grávida em meio a produção de I Love Lucy – o que mais tarde a transformaria na primeira mulher gravida a aparecer na Televisão –, e o escândalo da traição de Desi eventualmente estourou. Entretanto, há um detalhe basilar em como esses eventos são agrupados: eles não ocorreram na mesma semana. Essa foi uma escolha particular de Sorkin para aumentar a carga dramática do longa – uma característica recorrente em suas obras – e para poder aglutinar a estrutura do roteiro em sete dias, já que, no filme, todos os conflitos desencadeiam em paralelo com a gravação de um dos episódios do seriado.
E é a partir disso que começam a surgir as primeiras falhas de Apresentando os Ricardos. Tematicamente caótico, parece que Sorkin queria fazer um comentário sobre todos os aspectos minimamente relevantes da biografia, o que torna a narrativa sem foco e confusa. Então será discutido o machismo na indústria da Televisão, e como isso afeta tanto o lugar de atrizes, a partir de Lucille, quanto quem compõe a sala de roteiristas, através de Madelyn Pugh (Alia Shawkat); os casos de gordofobia e a desfeita contra Vivian Vance (Nina Arianda), a atriz responsável por interpretar Ethel; e a xenofobia institucionalizada dentro do set, quando a produção é incapaz de distinguir nomes ‘latinos’ e ‘hispânicos’.
O problema é que, ao atirar para todos os lados, o resultado só poderia ser superficial. Em momento algum essas temáticas se conectam, fazendo com que certos diálogos soem gratuitos, rasos, e com que, mesmo os debates que o filme estava mais apto a abordar, percam sua potência. O mesmo ocorre com a montagem do veterano Alan Baumgarten. Desde o seu início, Being the Ricardos tenta simular uma espécie de mocumentário, com personagens da trama, mais velhos, relatando os acontecimentos em entrevistas. Porém, a presença desse aspecto é frágil e utilizada somente para comentários expositivos e desnecessários. Além disso, a divisão da narrativa em dias úteis, que representa de maneira quase didática o processo de produção de um episódio – da leitura do roteiro à gravação final – é mal explorada e pouco conversa com os eventos da história.
Em meio a tamanha algazarra, é difícil identificar qual o arco principal do longa. Poderíamos supor que trata-se da perseguição que Lucille sofre da mídia e do governo americano, mas não. Apesar de ser o primeiro pontapé da narrativa, esse elemento sequer é abordado por mais de metade da sua duração, e a protagonista se preocupa mais com a traição do marido do que em ser acusada do que era, na época, considerado um crime político. Todo o suspense e tensão que o roteiro pede são suprimidos por uma direção estéril, que peca em transmitir o real impacto dos eventos retratados. É sabido, pelo contexto histórico em que somos inseridos, o quão perigoso era ter conexões com o Partido Comunista, mas o filme por si só não sustenta esse fato.
Na verdade, esse não passa de um chamariz que nos distrai do verdadeiro foco temático: a rivalidade egóica de Lucille e Desi. Uma família nuclear, nos desejáveis moldes do American way of life, personificado no amor platônico e fictício dos Ricardos, mas que, ao transbordar para a vida real, se traduz em um relacionamento mesquinho, pautado por um embate constante de ego. Os dois disputam o estrelato o tempo todo e são incapazes de reconhecer o sucesso um no outro. Quando Lucille é selecionada para o papel principal de um grande filme, Desi reclama que ela havia prometido acompanhá-lo em seus shows e se incomoda se ela é mais reconhecida que ele em bares.
Para Lucille, porém, é um pouco diferente. Se o filme faz questão de reiterar a obsessão que sua verdadeira protagonista tem com o conceito de ‘lar’, seu ímpeto em formar uma família se confunde com a exibição de I Love Lucy, quando ela se mostra disposta a mergulhar na mais estereotipada e infantilizada imagem feminina apenas para manter seu marido por perto, mesmo com as negativas da produtora. Nicole Kidman prova-se mais que merecedora de sua conquista no Globo de Ouro ao desenhar majestosamente o contraste entre a ingenuidade e a voz ardida de Lucy Ricardo, com sua comédia física e trejeitos exagerados, e a personalidade intransigente de Lucille Ball, com sua postura severa que domina o estúdio e manda e desmanda em todos os seus colegas de set, incluindo o diretor.
Na tentativa de descobrir o porquê essa mulher, com sua presença austera e inexorável, cria tantas ficções, descobre-se uma Lucille quebrada e exausta, que diminui os outros na necessidade de ser respeitada, e que se encontra presa em uma maldição digna dos contos dos Irmãos Grimm: onde ela é amada e desejada pelo marido, mas somente dentro daquele único recinto. O arco de Lucille Ball comprova o caráter performático da estrutura familiar cisheteronormativa e que, no fim das contas, a expectativa posta sobre as mulheres – da constituição de um lar e dos cuidados sobre a casa e os filhos como sua função absoluta – é simplesmente falsa e fundamentalmente impossível.
Se a trama desenvolve Lucille com profundidade, o mesmo, infelizmente, não pode ser dito sobre Desi. Um detalhe que não foi mencionado até agora, mas que é de suma importância para compreender a conjuntura da história: Desi era cubano. Seu pai, prefeito da cidade de Santiago, foi preso durante a Revolução Cubana com a ascensão dos bolcheviques, forçando sua família a fugir até Miami. O que levou o cantor e ator a, mais tarde, ser um expoente na popularização da Música latina nos Estados Unidos do século XX. Então, sim, um homem cubano, em plena Guerra Fria, protagonizou um casamento interracial no seriado estadunidense mais famoso do período, que visava representar a família tradicional em seu mais puro estado. E Apresentando os Ricardos não dá a mínima para isso.
Afinal, estamos falando de um cubano, pisando em solo absolutamente intolerante, que é casado com uma mulher tida como comunista. É esperado, portanto, que esse fenômeno tivesse implicações mínimas, tanto na sua figura pública quanto na sua vida. Porém, esse elemento é totalmente ignorado. Da mesma forma, sua relação com os EUA é pasteurizada e simplificada. Diferente de outras histórias que têm sido contadas no Cinema, Desi não é um personagem que expõe as hipocrisias do sonho americano. Ao contrário, para Sorkin, ele é a prova cabal de que o discurso meritocrático do neoliberalismo é real. Desi é um verdadeiro patriota americano, que os serviu na Segunda Guerra com prazer e orgulho. E o texto valida seu amor cego pelo país, incluindo-o sem nenhuma ambiguidade ou nuance.
Pior. Desi é colocado como porta-voz de incitações anticomunistas de seu roteirista, descartando todas as complexidade do cenário político cubano durante a revolução, o que transforma Being the Ricardos de uma experiência tediosa para mórbida em um instante – ainda mais hoje, quando ideologias de extrema-direita voltam a crescer. Sem contar a escolha de Javier Bardem no papel, que é espanhol, ao invés de um ator latinoamericano, expondo Sorkin como peça ativa da própria xenofobia que ele acredita criticar. E, se a investida dos guerrilheiros de Cuba é demonizada e descontextualizada, o longa tem a pachorra de, deliberadamente, aclamar a imagem de J. Edgar Hoover, consagrando-se de longe como o ato mais asqueroso de toda a trama.
Mesmo em um terreno familiar, Aaron Sorkin pisa em ovos aqui. O que salva esse desastre prenunciado do esquecimento é a atuação irretocável de Nicole Kidman, que infelizmente entra no Oscar como azarona. Apesar da vitória no Globo de Ouro, a competição na categoria é acirrada, e tanto no SAG Awards quanto no Critics’ Choice Awards, termômetros importantes para a premiação, ela saiu de mãos atadas. Além da atuação tíbia de Javier Bardem e J. K. Simmons, que são incluídos por pura menção honrosa, essa é de longe a pior obra da filmografia do recém-diretor, e, convenhamos, não deveria nem ser cogitada em categorias de Direção ou Roteiro.
A única conclusão possível é que Sorkin ainda tem muito chão para andar como diretor até adquirir a capacidade de fazer seus roteiros bons filmes. Apresentando os Ricardos sobressai os vícios e manias característicos de suas obras, enquanto camufla seus méritos. Os diálogos em bate-bola frenéticos que ele adora escrever ficam ainda mais intrincados do já costumavam ser, ao passo que o clima de angústia e apreensão, que permeia grande parte de seus enredos, lastimavelmente murcha. E assim, qualquer potencial da trama é praticamente diluído por uma cadência narrativa terrível e uma visão artística pior ainda.
Todavia, nesse caso, nem o seu texto salva. Na busca artificializada por construir uma obra relevante aos nossos tempos, Sorkin se apropria de signos depreciativos com total irresponsabilidade para, no fim, ratificar uma retórica perversa e uma mensagem que até pensa ser valiosa, mas que se mostra seguidamente contraditória, enquanto carrega um subtexto repulsivo. Talvez, antes de criar um estudo de personagem imensurável, que supostamente investigaria a origem da energia criativa da humanidade, seja hora do cineasta fazer um autodiagnóstico e compreender o porquê ele tanto insiste nessas histórias. Ao acreditar pretensiosamente ser um manifesto político essencial, Apresentando os Ricardos demonstra refletir o que há de mais alienante na atual indústria hollywoodiana.