Vitor Evangelista
Algo está vindo, algo bom… Para o cineasta que já realizou de tudo (dos tubarões assassinos aos soldados resgatados e os cavalos de guerra), o desafio de recriar seu musical favorito foi ideal para Steven Spielberg modelar, com as mãos e o coração, uma história clássica. A reimaginação de Romeu e Julieta, que foi batizada de West Side Story em referência ao cenário nova-iorquino e periférico da obra, surgiu em 1957 nos palcos do teatro. Quatro anos depois, Jerome Robbins e Robert Wise fizeram da peça um filme.
O resultado foi um saldo de 10 Oscars (incluindo Melhor Filme, Direção, Ator e Atriz Coadjuvante), e o nascimento do legado imortal que Amor, Sublime Amor sustenta até hoje. A ideia de fazer um remake da versão original de 61 era sinônimo de dinheiro jogado fora até a revelação do nome por trás do projeto. Spielberg conta que sonha com um West Side próprio desde a infância e, no auge dos 75 anos, ele finalmente riscou o item da lista de desejos (e ainda pôde dedicar a obra ao pai, Arnold Spielberg, que faleceu aos cento e três anos, em agosto de 2020).
A produção, rodada entre julho e setembro de 2019, pouco antes da pandemia, passou mais de dois anos em pós, foi adiada diversas vezes e chegou aos cinemas no último mês de 2021, sendo bastante prejudicada pela estreia de Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. Fato é que, quando se trata de Amor, Sublime Amor, todo cuidado é pouco. Desa vez escrita pelo veteano Tony Kushner com base no texto original de Arthur Laurents, a história eclode na rivalidade de duas gangues, os polacos Jets e os porto-riquenhos Sharks, e a briga pelo território do lado oeste da cidade, atravessado pelo processo de gentrificação.
O primeiro reparo de Spielberg frente ao longa dos anos sessenta foi na escalação de seu elenco. Enquanto o original trouxe a americana com ascendência ucraniana Natalie Wood no papel de Maria e pintou as peles dos atores dos Sharks (todos norte americanos) para serem capturados como “mais escuros” pela câmera, dessa vez ator nenhum teve maquiagem racista colocada em seus corpos. Neste Amor, Sublime Amor toda a gangue de Porto Rico é vivida por um elenco latino, e quem assume o protagonismo sagrado é a novata Rachel Zegler. Seu Romeu é vivido por Ansel Elgort, contratado antes do surgimento das denúncias de abuso, fator que o apagou da divulgação do filme, ficando de fora de coletivas, tapetes vermelhos e reconhecimento da indústria.
Com apenas 18 anos, Maria sonha em se apaixonar, por mais que seu irmão mais velho Bernardo caçoe da ideia e tente a todo modo controlar sua vida. Tudo muda no baile do colégio, quando os olhos de Maria casam com os de Tony (Elgort), um Jet recém-saído da prisão e que agora tenta se manter longe da confusão das ruas. A câmera potencializa a turvação do ato de tropeçar no amor: as luzes se tornam pontos indistinguíveis, as paredes flutuam como ondas no mar. Pronto, está feita a receita para o desastre! Se um Montéquio não pode sonhar em notar uma Capuleto, com os Jets e os Sharks a coisa é mais feia.
A mera imagem dos dois pombinhos atrás das arquibancadas é o bastante para queimar a paciência de Bernardo (David Alvarez), e no percurso, acender a dinamite que é Riff (Mike Faist), melhor amigo de Tony e a pessoa que assumiu a liderança do grupo no seu período preso. Para quem estranhar a ideia contracorrente de amor à primeira vista, promessas de sentimentos eternos e uma cantoria sem sossego ou sinal de fadiga, fique sabendo que os musicais são assim, ou melhor dizendo, os bons musicais são.
Juras são trocadas, e lutas, marcadas. Maria parte para casa, com o coração saltitando em meio às borboletas que multiplicam em seu estômago. Quando pula da janela para as escadas da varanda, a câmera captura a garota com uma luz celestial. Ela passeia pela imagem, ao mesmo tempo em que Tony canta sobre uma moça que beijou, chutando poças d’água e espantando os pombos yankees que eram mascotes da cidade mesmo 60 anos atrás.
Através do refino com o qual Steven Spielberg vai moldando seus elaborados planos visuais, Amor, Sublime Amor brinca com a ingenuidade do meio que está inserido, mas não sem entender o clima político e social da história. A Nova Iorque do amor perfeito de Tony e Maria é a mesma cidade que cultiva a guerra infinita entre as gangues. Elas lutam por um pedaço de terra morta, um resquício de prosperidade que já existiu, mas agora acabou. O tenente Schrank (Corey Stoll) não se acanha quando joga na cara dos branquelos que todo mundo prosperou: os italianos, os alemães, os judeus, e quem ficou para trás foram eles, batalhando entre as cinzas de um proto-metrópole que logo os expurgaria.
A areia se mescla ao pó que se mistura ao gosto amargo da gentrificação. Os polacos querem clamar para si os muros, as vielas e até as farmácias, porém nada de fato é de seu pertence. O mundo é dos ricos, e nenhum deles tem sequer um tostão furado nos bolsos dos jeans surrados e sujos de graxa. Tony se afastou dessa visão, e depois do xilindró, memória que o afeta gradualmente ao longo da trama, ele deu um passo à frente. Quando equiparado à visão de Riff, é como se o texto nos mostrasse a mesma pessoa em momentos distintos da vida.
A cena de abertura, que sobrevoa uma montanha cinzenta de entulho formado por escadas destruídas, é o prenúncio do agouro. Assobios, estalos e sussurros servem de trilha para a introdução dos Jets e seu charmoso líder. Se quisesse, o indicado ao BAFTA Mike Faist poderia transformar Riff em uma figura odiosa, rancorosa e taciturna, mas ele opta por um caminho de egoísmo ingênuo: o rapaz persegue os Sharks pois é a única coisa que soube fazer a vida toda; a violência foi ensinada e aprendida como uma língua materna.
O mesmo vale para o trabalho de David Alvarez na pele de Bernardo (papel que rendeu a George Chakiris o Oscar de Ator Coadjuvante em 62). Integridade e força reforçam o símbolo de proteção que tanto Maria quanto Anita (Ariana DeBose) enxergam nele. A fisicalidade de um lutador de boxe contrasta com a cintura solta que vem à tona na hora de dançar coladinho da amada, algo que se repete em todo o cerne de Amor, Sublime Amor, é claro. Sem isso, seria um bocado mais difícil levar a sério o bando de marmanjos piruetando no centro da quadra da escola.
Também seria complicado acreditar na mágica sem o trabalho sobrenatural de coreografia orquestrado por Justin Peck. A maneira como os corpos se movem, assim como as sombras, as formas, a captura de movimento e a dança que servem como artifício narrativo ao filme, são todos acertos da equipe, como sempre muito bem amparada por Spielberg (no primeiro e último musical da vasta carreira). Os figurinos de Paul Tazewell flutuam nos cenários de Adam Stockhausen e Rena DeAngelo, e são capturados pela desenvoltura e brandura das lentes de Janusz Kaminski, todos reconhecidos pela Academia com nomeações em 2022.
A equipe sonora, formada por Tod A. Maitland, Gary Rydstrom, Brian Chumney, Andy Nelson e Shawn Murphy, dá vida, sangue e suor no exercício de mixar a trilha sonora, as músicas cantadas e os sons do ambiente. É inacreditável e regozijante a experiência de assistir no cinema o espetáculo técnico de West Side Story, que parte da iluminação, caminha pela estilização estética e termina na montagem monstruosa de Sarah Broshar e Michael Kahn. A edição, em uma das esnobadas mais colossais do ano, não apareceu na lista final do Oscar, mas saiu vencedora do Critics Choice Awards.
Nas premiações, quem já cansou de ouvir o nome chamado ao palco é Ariana DeBose. Ela dança, ela canta, ela atua, ela honra o papel-legado de Rita Moreno e ainda consegue elevar o patamar da personagem. Vinda do Teatro, DeBose chegou a recusar a chamada de elenco, mas a diretora de casting Cindy Tolan insistiu e conseguiu convencê-la. O resultado não poderia ser mais positivo: atriz coadjuvante mais premiada na temporada da crítica, vencedora do Sindicato dos Atores e do BAFTA, em evidência por seu papel como mulher latina, negra e queer, é responsável por energizar Amor, Sublime Amor e conferir a ele esse status de relevância artística.
Sua Anita foge da imitação da original, buscando novos riscos e novas rimas no humor, no drama e na entrega visceral e de carisma. DeBose passa por um arco de desilusão e queda inestimável e talvez, lá, no fundo, o tal sublime amor, mais importante que a vida, seja uma lição endereçada também a ela, e não somente à Maria. Com Bernardo, Anita exercita seu lado mais passional e incisivo. Com Maria, representa a figura materna que ficou lá em Porto Rico. Com Valentina (Rita Moreno), ela é o embate das visões entre o ontem e o hoje.
O número de America, momento mais esperado do remake, é o show particular de DeBose. Ao passo que a atriz começa o argumento de como é bom viver nesses Estados Unidos de prosperidade, acompanhada das mulheres da comunidade, os homens se prestam ao papel de colocá-las de volta à órbita: “Comprar no crédito é tão bom! Um olhar para nós e eles cobram o dobro!”. Nessas dissonâncias, Anita não se dá por vencida e continua caminhando em direção aos seus sonhos, o de engrandecer de costurar como forma de paixão e ter o seu trabalho reconhecido.
Rodopiando por uma Nova Iorque insatisfeita com a chegada da população em êxodo de Porto Rico, Anita mal prevê o terror que a aguarda. Afinal, a América que serve como palco da canção mais alto astral e otimista do filme é o mesmo país onde ela é quase estuprada pela gangue de polacos. Diferente da versão de 61, quando as jovens brancas assustem em silêncio o ataque à Anita, em 2021 Steven Spielberg reconstrói o centro dramático da cena e entrega à Valentina a sentença que o público aguardou sessenta anos para ouvir proferida.
“Eu os conheço desde pequenos e vocês se tornaram estupradores”, ela lamenta, à meia-luz da farmácia onde o marido Doc trabalhou a vida toda. Ela afugenta os marginais, mas não sem antes ouvir de Anita uma verdade entalada na garganta. “Traidora”, profere a garota, “você se casou com um gringo e deu espaço e casa para os filhos deles”, aqueles que matam os porto-riquenhos, os latinos como Valentina. Sem ter o que responder, Rita Moreno assiste Ariana DeBose virar as costas e voltar ao refúgio de uma nação que, mesmo não sendo madura como o lado oeste, acolherá ela em qualquer circunstância.
A progressão dramática de West Side Story, que já era um ponto de atrito no filme original, dessa vez é decantada até a última gota. E, por mais que Rachel Zegler não atue tão bem quanto cante, a protagonista passa por uma onda de felicidade genuína (desde a perfeita rememoração da cena da varanda e os versos de Tonight, até o êxtase de I Feel Pretty), para depois ter a bomba de medo estourada em seu colo. Quando ouve de Chino (Josh Andrés Rivera) o destino de Tony, a jovem teima em acreditar no ocorrido.
Zegler se esforça para as lágrimas imprimirem-se orgânicas por cima dos olhos enfraquecidos e das olheiras de cansaço. Ao dar mais gás a uma história que ninguém tinha noção de que poderia ser melhor do que já foi, a revolução de Spielberg não é o bastante para dar credibilidade ao momento fundamental da passagem de amadurecimento de Maria. Ao se deitar com Tony poucos minutos depois de descobrir o que o Jet fez, o filme volta a perder o público, à moda do que fez em 1961. O que pode ser extraído de bom da sequência deslocada é a batalha entre amigas e irmãs na forma de A Boy Like That / I Have a Love.
Divisor de águas, é nesse momento em que Anita percebe que Maria já selou seu destino. Elas se separam, física e emocionalmente. Ariana DeBose concentra toda a energia que havia usado para cantar, dançar e se mover, dessa vez no exercício da pausa. Quando chora, em luto pelo amor que se foi, Anita entende que o mundo, e a América que ela tanto idealizou, não passam de um pesadelo camuflado.
O amor é mais importante que a vida? Ou seria o contrário? Mais trágico que em Romeu e Julieta, o destino da História do Lado Oeste acaba em tragédia para todo lado. Anita perde seu norte, Maria perde seu cerne, Chino perde sua falsa-inocência. Valentina perde o resquício de fé que mantinha de um mundo melhor. Mas, surge então uma procissão de brancos e latinos carregando o corpo do mártir que sonhou em paz. Talvez, o prolífico e experiente Steven Spielberg aponte para uma solução. Talvez, da morte nasce a fagulha do amanhã.