Vitória Lopes Gomez
Enquanto as ondas quebram na costa nublada de Lyme Regis, na Inglaterra, a paleontóloga Mary Anning (Kate Winslet) caminha quieta, junto de seus novos achados. Os primeiros minutos do longa, passado em 1840, já ditam o ritmo para o restante do filme: acompanhamos a vida pacata e solitária da introspectiva Anning, que prefere a companhia dos fósseis a pessoas. A morbidez de seu cotidiano em Ammonite só é interrompida com a chegada de Charlotte (Saoirse Ronan), que, tendo de ficar sob os cuidados de Mary, muito aos poucos, passa a se aproximar dela.
Ammonite, o segundo longa do inglês Francis Lee, imediatamente rendeu comparações com o francês Retrato de uma Jovem em Chamas, pela semelhança na ambientação e na temática. O filme também lembra o trabalho anterior do diretor, God’s Own Country, em que um homem do interior vê seu cotidiano mudar com a chegada de um migrante romeno. Mas, semelhante ao primeiro e ao contrário do segundo, onde o encontro inicial entre os personagens é intenso e carnal, em Ammonite, o romance entre as protagonistas não é imediato, mas se dá conforme a convivência, a qual lutamos para acompanhar.
Mary Anning, apesar de conhecida no ramo da paleontologia, vive na pobreza, já que sua fama não garante seu sustento na sociedade patriarcal inglesa. Escavando fósseis na praia e vendendo a turistas, ela mal consegue sustentar a mãe doente, interpretada por Gemma Jones, que mora com ela. Quando Mr. Murchison, também paleontólogo, entra em sua loja e oferece pagamento para que Mary lhe mostre suas técnicas, apesar de contrariada, ela aceita.
Mas Murchison, mesmo sendo menos conceituado e experiente que Anning, é mais requisitado na profissão, majoritariamente masculina, e tem de viajar a negócios. Não querendo levar a mulher, que sofre com a perda recente de um bebê, ele exime seu peso na consciência ao pagar Mary para fazer companhia à esposa em sua ausência (que não será longa). Sem poder se dar ao luxo de negar a oferta, a paleontóloga passa a incluir Charlotte em suas excursões à praia, como acordado.
A relação inicial das duas combina com Lyme: fria e apática. As cores sóbrias da cidade, das vestimentas e do interior da casa de Mary ressaltam a morbidez e a solidão, assim como o desconforto na presença uma da outra. Charlotte, que vem da capital e tem uma vida de luxo com o marido, se vê obrigada a viver nas mesmas condições que Mary, com pouca higiene e comida e fazendo trabalhos braçais. Os comportamentos, as roupas e a decoração da casa de cada uma explicitam a diferença entre as classes sociais.
Além dos aspectos visuais, o trabalho de som também tem parte importante na ambientação. As ondas do mar, os sons da praia e das rochas, que muitas vezes se sobressaem aos poucos diálogos, contribuem para a imersão no cotidiano de Ammonite e, ao criarem uma atmosfera sensorial, ajudam, inclusive, na construção da intimidade entre as protagonistas. As velas mais ardentes e o som do fogo queimando, por exemplo, se acentuam conforme as duas se aproximam.
A situação piora quando Charlotte fica doente e Mary tem que se dedicar aos cuidados da mulher, que, sem ter com quem ficar, passa a morar em sua casa. Após a melhora, as duas, que agora vivem juntas, começam a se aproximar discretamente. Até então, o ritmo do filme, apesar de fazer jus à ambientação do século 19, acompanha até demais a vida de Anning: a lentidão e pacacidade passam a sensação da melancolia e do tédio da rotina retratada, mas, ao fazê-lo, corre o risco de perder a atenção do espectador.
É só após uma aproximação maior entre as duas que o ritmo engrena. Quando, em uma das excursões à praia, Charlotte ajuda Mary a escavar uma amostra de amonite, a relação entre elas escala. Anning, tão acostumada a viver e trabalhar sozinha, aceita a ajuda e começa a se abrir mais para a convidada, que já não é mais tão indesejada.
A amizade que surge, no entanto, revela ser mais do que isso. Apesar da previsibilidade do romance, são poucos os diálogos que levam a essa conclusão e os toques e olhares discretos, que as atrizes dominam, são os responsáveis por criarem a tensão entre Mary e Charlotte. Seja pela urgência da paixão reprimida ou pela volta cada vez mais próxima do marido de Charlotte, a partir do momento que, finalmente, as duas se rendem aos toques uma da outra, Ammonite desempaca.
Enquanto o mundo ao redor continua pacato e frio, Mary e Charlotte esquentam. Porém, se por um lado a mudança ilustra como a relação escapou da rotina, por outro, quebra a sutileza estabelecida entre as duas, já que a narrativa não se sustenta assim e rapidamente volta ao que era antes. A incompatibilidade no tom fica clara em uma das cenas de sexo: as protagonistas começam discretas, como a dinâmica entre elas dita, mas logo tornam o contato quase emergencial. A intimidade construída se mantém graças à performance de Kate e Saoirse, que passam a intensidade do momento, mas o que poderia representar o clímax da relação se torna mais um ato carnal e imediato do que romântico.
Embora o tom acelerado de Ammonite se limite às cenas de sexo, a volta à lentidão, em um primeiro momento, não significa o fim da relação, mas torna-se novamente condizente, com o retorno do marido de Charlotte e sua partida. Porém, diferentemente de Retrato de uma Jovem em Chamas, o final de Mary e Charlotte é um tanto mais esperançoso por não saber como acabar, mesmo que a resolução rápida fuja (mais uma vez) do ritmo proposto até ali.
Com os poucos e mal trabalhados diálogos do frágil roteiro, que também ficou por conta de Lee, o filme cairia por terra sem atuações excepcionais. Felizmente, a produção não poupou e as escolhidas foram as conhecidas do Oscar Kate Winslet (seis vezes indicada e vencedora por O Leitor) e Saoirse Ronan (quatro vezes indicada, mas ainda sem vitória), que, apesar de não terem uma química invejável, salvam a história de Ammonite.
Seja nos momentos iniciais, com as poucas falas, ou após a aproximação, com os desabafos e discussões, as protagonistas conseguem comunicar os sentimentos sem precisar se apoiar nas linhas do roteiro. Pela linguagem corporal e pelos olhares, as duas transparecem o estranhamento, a curiosidade, o prazer, o conflito interno e o coração partido de suas personagens. Winslet merece um destaque especial: Mary Anning é a mais fechada e quieta das duas, mas a performance da inglesa, uma das melhores de sua carreira, revela tudo o que ela não diz.
Sem dúvidas, Ammonite não seria o mesmo sem Kate Winslet e Saoirse Ronan, mas a necessidade de juntar as personagens a todo o custo deixou de lado outros pontos interessantes da trama, que acabaram servindo apenas como um subtexto. O histórico profissional de Mary Anning, por exemplo, não foi muito além das poucas menções dos seus feitos e tarefas cotidianas da profissão. O papel da mulher na sociedade, outro ponto que, no início, parecia promissor também não teve um desenvolvimento direto, apesar de justificar ações e comportamentos e mover a narrativa.
Mesmo com um roteiro fraco e cortes que se estendem por mais tempo que o necessário, Lee entrega uma direção tecnicamente certeira. Procurando os pequenos detalhes e simbologias, ele cria uma atmosfera intimista e sensorial, que quase compensa a falta de toque ao tentar retratar um relacionamento entre mulheres.
Por vir depois do brilhante Retrato de uma Jovem em Chamas, que colocou uma diretora lésbica no comando e elevou as expectativas, Ammonite não traz nada de novo e se torna imemorável. É uma boa para quem quer ver Saoirse Ronan e Kate Winslet mostrarem seu talento e versatilidade. Talvez, com uma diretora ou roteirista por trás da história, o relacionamento se tornaria mais crível e emocionante e as atrizes teriam (ainda) mais com o que trabalhar.