Marina Ferreira
“Quando um amor é mais forte do que a própria vida, ele não cabe numa só história”. Era o que dizia a primeira chamada da novela Além do Tempo, no ano de 2015, logo de início chamando a atenção do público, de forma sutil, à seu formato inovador e até mesmo revolucionário. Em seus 161 capítulos, a novela da seis, escrita por Elizabeth Jhin e dirigida por Pedro Vasconcelos, cumpriu sua missão em contar uma grandiosa história de amor, dividida em duas fases muito distintas entre si, que se comunicavam em excelentes sacadas de texto, um enredo muito bem amarrado e uma montagem de tirar o fôlego.
Ambientada no sul do país, inicialmente na fictícia cidade de Campo Belo, no final do século XIX, Além do Tempo nos conta a história de Lívia e Felipe, dois jovens de condições sociais diferentes, unidos por um inexplicável laço de amor à primeira vista. Ele, um conde vindo da capital do país, sobrinho da poderosa condessa Vitória Castellini (Irene Ravache), e ela, uma noviça, filha da humilde dona de taverna – e saltimbanco – Emília Diffiori (Ana Beatriz Nogueira). Esse amor é proibido desde o primeiro momento, por diversos impedimentos da vida. Felipe é noivo da mimada Melissa (Paolla Oliveira) e Livia é fruto do casamento secreto de Emilia e Bernardo (Felipe Camargo), o filho da condessa.
Com tramas que dialogam com facilidade, apoiadas por um excelente elenco secundário – grandes nomes como Luis Melo, Carolina Kasting, Nívea Maria, Louise Cardoso, Luiz Carlos Vasconcelos e outros – a primeira fase discorre a partir dos conflitos entre Lívia e Melissa, pelo amor do conde, o ódio entre Vitória e Emilia, que perdura há mais de duas décadas, além da busca incessante da saltimbanco pelo amor de sua vida, desaparecido há muito tempo e a relação singela e ao mesmo tempo conflitante entre Lívia e Vitória. Há também Pedro (Emilio Dantas), o grande antagonista da novela, e Ariel (Michel Melamed), o cocheiro da cidade que na verdade é um anjo, responsável por observar e cuidar dos moradores dali, ajudando a encurtar os tormentos daqueles que não merecem sofrer.
Numa novela com tantos personagens que poderiam ser considerados conhecidos ou até mesmo óbvios, por já terem sido vistos em tantas outras produções de época, com grandes romances proibidos e tramas perigosas, a obviedade passa longe e abre espaço para um desenvolvimento sensível e surpreendente de tramas que contam com início, meio e fim, sem pontas soltas ou perguntas não respondidas. Nos 87 capítulos da fase inicial, acompanhamos de olhos fixos à tela uma história sem barrigas, pois não há a sensação de estarmos perdendo tempo, a trama se mantém constante, com novas reviravoltas e subtramas que se amarram perfeitamente ao grande enredo.
Temos o desenvolvimento completo de personagens, que crescem em arcos heroicos, lidam com conflitos narrados de forma humana e verdadeira e cenas que arrancam o fôlego por diálogos dignos de prêmios, ditos com toda entrega por figuras grandiosas da TV. Emoções também não faltam em momento algum, pontuadas com excelência por um trilha sonora instrumental composta por Rodolpho Rebuzzi, que aos poucos, nos guia ao grande ápice da primeira fase.
A morte de protagonistas já foi um tema explorado anteriormente em novelas do mesmo gênero espiritualista, como é o caso de A Viagem (1975 e 1994). Na trama de Ivani Ribeiro, os personagens principais Otávio e Diná, marcados por um amor trazido de outras vidas, fazem a passagem em um curto espaço de tempo um do outro e vivem esse amor no pós vida. Mas em Além do Tempo, vemos algo jamais trabalhado na teledramaturgia brasileira.
No capítulo 87, completamente construído com ares de final de novela, o que deixou o espectador em estado de dúvida. Afinal, havia o sentimento de que a obra havia durado pouco, vemos os finais felizes e infelizes dos personagens, que por suas escolhas e caminhos chegaram a esses desfechos e somos tomados por um alívio momentâneo pela felicidade do casal principal, que tanto havia lutado para alcançar os momentos de paz que enfim viviam.
Qual não foi a surpresa, quando em uma cena pacífica, puramente romântica, de declarações e uma bela paisagem, fomos surpreendidos pela presença do vilão Pedro, que desafiou o mocinho para um duelo de vida ou morte. Maior ainda foi a surpresa ao termos a aparição da outra vilã da trama, Melissa – abandonada e ofendida por Felipe – que surge como um carrasco tomado de ódio, empurrando Lívia pela borda de um penhasco.
Em uma eletrizante sequência, com momentos de tirar o fôlego, temos o destino selado de 3 protagonistas, de forma visceral. Transtornado por acreditar que Melissa havia matado seu grande amor, Pedro a atravessa com um florete e se aproxima da beirada do penhasco, onde Felipe e Lívia se penduram juntos, agarrados à uma última esperança de vida. Num ato de crueldade, o vilão acerta Felipe no peito com a mesma espada e o casal cai no rio, afundando juntos para a morte certa e dando início à mais uma sequência memorável.
É nesse momento que entendemos a genialidade da dupla responsável pela novela. Aqui, os planos de Elizabeth Jhin se tornam claros, ao realizar uma passagem de 150 anos na trama e o olhar afiado de Pedro Vasconcelos nos dá uma transição linda, ao som de Together, da banda inglesa The XX e um voiceover, com um dos diálogos mais marcantes da primeira fase.
Enquanto os corpos de Lívia e Felipe afundam pelo rio, ouvimos as batidas incessantes do relógio da música e um som alto, quase ensurdecedor é aos poucos adicionado à cena: o conhecido, moderno e implacável som dos trens correndo sobre os trilhos do metrô. De forma arrebatadora, a cena nos situa em 2015, no Rio de Janeiro, na estação da Carioca, onde minutos depois, Lívia e Felipe se reencontram nesta nova vida, dando início ao que os kardecistas chamam de resgate.
“ Você sabe rezar? Reza comigo, tem que ter fé! “
“Não acredito em um Deus que parece se divertir com o sofrimento humano”
“Eu sei o quanto está sofrendo, eu sinto muito, me dói muito vê-lo assim. Eu queria tanto que fosse diferente, que tudo fosse diferente.”
“Que Deus é esse Lívia? Ele parece se divertir, permite que os que se amam se separem. Permite que você que eu amava…. E que eu nunca deixei de amar… “
Na teoria kardecista, o resgate é a forma como o espírito evolui, se eleva moralmente e amarra as pontas soltas de outras vidas. Nessa segunda fase, temos de volta os mesmos personagens. Mesmos nomes, rostos e relações, porém, novas personalidades, passados e destinos. Lívia e Felipe agora inverteram os papéis. Ela é a herdeira de uma vinícola bem sucedida, é novamente filha de Emília e noiva de Pedro. Felipe é um simples dono de uma vinícola familiar no Rio Grande do Sul, casado com Melissa e pai de Alex – seu filho na outra vida. Seus caminhos mais uma vez são atravessados pelo irrefreável acaso, embora Ariel, que antes havia feito de tudo para ajudá-los, agora age com desconfiança em relação ao amor dos dois, pois perdeu a fé, assim como suas asas.
Enquanto, na primeira fase da novela, as histórias de Lívia e Felipe eram costuradas juntamente às subtramas, tomando para si a maior parte da emoção dos acontecimentos, na segunda fase temos um grande destaque à uma trama secundária lindíssima, estrelada pelas ilustres Irene Ravache e Ana Beatriz Nogueira. Se no final do século XIX, vemos o ódio entre as duas, alimentado pela arrogância da condessa Vitória, que desaprovava o romance entre o filho e a saltimbanco, e a ira de Emilia, por ter sido separada de Bernardo por obra da malvada nobre, em 2015 temos puramente o ressentimento e a incompreensão.
Na nova vida, Vitória e Emilia são mãe e filha, separadas há mais de 40 anos, por uma decisão apaixonada da mais velha, que abandonou a casa e a família para viver um grande amor. Protagonizando cenas de orgulho e desprezo, a personagem de Ana Beatriz Nogueira é o exato reflexo de tudo aquilo que odiava na vida anterior. É a implacável dona da Vinícola Beraldini, que não mede esforços para conseguir sua vingança contra a mãe que a abandonou e não a reconhece, chegando à extremos de rebaixá-la publicamente.
Seu contraponto é a personagem de Irene Ravache, que se mostra em uma de suas faces mais dual, entregando um desenvolvimento de personalidade como não estamos acostumados a ver. Temos a desconstrução da figura arrogante de Vitória, que abre completamente o coração para as mudanças que sua vida sofreu e que consegue inclusive sentir compaixão por Emilia, apesar das constantes brigas e humilhações. Em uma das cenas mais marcantes de toda a trama, já próximo ao final da novela, temos o confronto definitivo entre Vitória e Emília, onde a dona da vinícola revela à mais velha que é sua filha.
Ali, temos a entrega completa das atrizes. Podemos ver o absoluto desespero no olhar de Ravache e o ódio e confusão espalhados por todo o rosto de Nogueira. É uma das tantas cenas que, em uma série norte-americana, seria marcada por uma indicação ao Emmy, para as duas atrizes que se doaram por completo, para a execução impecável de uma revelação que mudou os rumos finais da trama, culminando no fechamento do ciclo de perdão entre as duas.
Com o princípio do resgate em mente, conseguimos apontar exatamente onde cada uma das tramas da novela se fecha, resolvendo questões que foram trazidas da outra vida, até chegarmos no grande momento, onde enfim temos o embate final entre os quatro protagonistas: Lívia, Felipe, Pedro e Melissa. Ao longo da segunda fase, o relacionamento de Felipe e Melissa se desgasta e chega ao fim, dando início a uma série de loucuras da mulher, assim como o noivado de Pedro e Lívia, que também encontra um ponto final. Ao contrário das tramas escandalosas da vilã, Pedro age de formas sutis, através de planos que antagonizam e buscam minar aos poucos o amor dos protagonistas.
Em mais uma jogada de mestre, entre tantas ao longo da novela, Jhin coloca os personagens exatamente no mesmo lugar em que estavam no primeiro desfecho: à beira de um penhasco, confrontados pelo vilão, com suas vidas em risco. Dessa vez, não há o cavalheirismo de Pedro, não há oferta de duelo, apenas um revólver, apontado para os dois protagonistas e a ameaça pairando sobre eles, entre palavras de ódio e uma atuação impecável de Emílio Dantas, que parece aos poucos perder a sanidade na trama. A cena vem carregada de expectativa, a tensão de novamente termos um destino mórbido ao casal que tanto merece a felicidade, assim como sabemos inconscientemente que, um quarto elemento está faltando na cena e que a qualquer momento poderá mudar o rumo de todas as coisas.
Esse quarto elemento é a personagem de Paolla Oliveira, que aparece para dar início ao clímax da cena, numa luta corporal com o personagem de Emilio, onde os dois rolam pelo chão e disputam a arma que antes ameaçava os mocinhos. A direção de Pedro Vasconcelos nessa sequência é primorosa, pois nos mostra cenas do passado e presente, em uma alternância que aumenta ainda mais a expectativa pelo fatídico fim e ao ouvirmos o disparo do revólver, prendemos a respiração por alguns instantes, até sabermos quem foi o atingido.
Nesse momento se encerra o primeiro resgate de Melissa, que fechou um ciclo ao deixar o corpo sem vida de Pedro no chão e o segundo se inicia ao se aproximar da beira do precipício, onde se penduravam Felipe e Lívia, puxando-os de volta com a ajuda divina – e invisível – do anjo Ariel e dessa forma, salvando as vidas de quem havia ajudado a condenar na encarnação anterior. Temos então um final digno de Elizabeth Jhin, que em sua toda sua trajetória de novelas anteriores – Eterna Magia, Escrito nas Estrelas e Amor Eterno Amor, por exemplo – veio construindo uma linguagem própria, de personagens reais, falhos e complexos.
Com todas as suas histórias contadas de forma particular, com pequenezas que somente a autora consegue trabalhar com tanto primor, Além do Tempo nos oferece reflexões que extrapolam o âmbito espiritual e filosófico, pois são feitas de formas sutis, que dialogam diretamente com as experiências de vida dos espectadores, tratando de assuntos que por vezes se tornam secundários para outros autores – como a compaixão, a fé, o perdão e o amor, não apenas romântico, mas como o amor fraterno e incondicional – mas que para Jhin, são os pontos focais de sua trama.
Abro agora um espaço para me corrigir, pois anteriormente disse que em 161 capítulos, foi contada uma grandiosa história de amor, dividida em duas fases, quando o mais correto seria dizer que: em 161 capítulos de uma grandiosa história de amor, que atravessou o tempo e venceu barreiras, duas novelas foram exibidas, com tramas independentes e complexas, com enredos e desfechos que foram na contra mão dos grandes clichês familiares e encerrando com uma mensagem de paz que reverberou, abrindo o caminho para a nova fase de trabalhos da autora, uma fase marcada pela coragem da inovação, renovando a carreira já consolidada da experiente e sempre relevante Elizabeth Jhin.
“Fica permitido aos novos tempos dizer “Eu te amo”… Uma vez pela manhã, uma pela tarde e uma pela noite. Fica estabelecida a lei do amor, fica permitida conhecer a verdade da vida a ausência da morte a eternidade da alma. Fica permitido dizer obrigado, por favor, com licença. Fica permitido entender que o erro é estágio da evolução. Fica totalmente permitido perdoar e se perdoar. Ficam permitidos o bem, a paz, a compaixão e a caridade. E revogam-se todas as permissões contrárias!”
Parabéns!!! Muito bem redigido as passagens da novela, eu assisti essa novela e falo com certeza que vc fez com maestria sua dissertação.