Giovana Guarizo
Diferente da solitude, a solidão não é uma escolha. Muito pelo contrário, a solidão é inevitavelmente assombrosa e dolorosa, carregada de frustrações e angústias. Então como lidar com ela? The Weeknd resolveu pegá-la pela mão e transformá-la em arte. A atração principal de todos os seus trabalhos não poderia ser diferente em 2020: é no deslocamento que ele encontra a fonte de inspiração para seus trabalhos geniosos. Solidão, loucura, incompreensão e sofrimento amoroso são os protagonistas do álbum After Hours, o maior dos acertos do canadense.
Fã declarado de Martin Scorsese, Abel Tesfaye, nome de batismo do artista, se inspirou na comédia After Hours. O filme de 1985, traduzido como Depois de Horas no Brasil, serviu de base para o nome e para o conceito do disco. Na trama, o protagonista Paul Hackett (Griffin Dunne) vive uma vida pacata e solitária na cidade de Manhattan, mas em determinado dia ele acaba entrando em problemas e perigos pela cidade após conhecer a cativante Marcy (Rosanna Arquette).
Esse roteiro é perceptível na sequência dos primeiros singles do CD: Heartless e Blinding Lights. Nessa era, Abel oferece um personagem rico e excêntrico, que desfruta do próprio dinheiro em Las Vegas usando um terno vermelho e preto. Em Heartless, os vícios e as dores são constantes. “Todo esse dinheiro e essa dor me deixaram insensível”, canta. No clipe, ele e um amigo estão totalmente entorpecidos por alguma substância alucinógena, fascinados pelas luzes de um cassino. O constante tema das drogas, desde o início da carreira, parece ser uma válvula de escape para todas as angústias e problemas do artista. Os entorpecentes se mostram como a única companhia que ele possui.
O personagem, atordoado pelas drogas e pelas luzes, se separa do amigo e começa a dirigir em alta velocidade, causando problemas para si mesmo; “a cidade está fria e vazia, não há ninguém por perto para me julgar”. É aí que está o grande triunfo do álbum, a viciante Blinding Lights. A música mira nos anos 80, mas mantém sua contemporaneidade e entrega os dois. É praticamente impossível encontrar um defeito na canção e no que The Weeknd concedeu no videoclipe e em todas as apresentações que fez. Principalmente a do VMA, que consegue arrepiar qualquer um. A música fez história na parada Billboard Hot 100 e ficou por 28 semanas consecutivas no top 5, se tornando a única canção a conseguir este marco.
Pode se dizer que, além de Martin Scorsese, The Weeknd se influenciou por ideias de Quentin Tarantino. O clipe de In Your Eyes, outro dos singles de After Hours, é digno de uma produção tarantinesca, com um roteiro sangrento e até mesmo sombrio. O maior plot twist dessa fase é quando, no vídeo, somos surpreendidos pela morte do personagem, que é decapitado por uma mulher. No final, ela começa a dançar com a cabeça dele em uma pista de dança. A propósito, os filmes de terror oitentistas Halloween, O Massacre da Serra Elétrica e até Thriller de Michael Jackson também são claras referências audiovisuais desse projeto.
O mais interessante no visual de After Hours é a cor vermelha estar sempre presente, no terno, no sangue, nas luzes dos clipes e apresentações. A letra e batida de In Your Eyes, uma das canções mais aclamadas do álbum, misturam com assertividade o pop e o R&B. O diferencial fica à cargo do saxofone, consagrando-a como uma das únicas músicas a trazer esse instrumento para uma produção de 2020. Além disso, The Weeknd convidou o conceituado saxofonista Kenny G para apresentações e para um remix.
É evidente que Abel não poupou inspirações cinematográficas no novo trabalho. Há momentos em que ele nos remete ao singular Coringa, principalmente na forma de segurar seu cigarro. Ou então, ao entrar em confusões em uma boate e sair sangrando e rindo, o que chega aos pés de Adam Sandler em Joias Brutas. E ainda em Trainspotting, que por si só já tem um roteiro a lá The Weeknd, com personagens tentando superar fracassos e vícios. Há uma narração de overdose na música Faith, e uma fanfic de que seu futuro vídeo possa ser o encerramento da grande era After Hours.
Esse ciclo artístico do canadense mostra com sucesso diversas de suas faces. O mais marcante do trabalho é o fato dele estar sempre machucado nos clipes e apresentações. O cantor externalizou um homem ferido sentimental e fisicamente (exemplo do clipe de Too Late, que aborda a angustiante hipersexualização do homem negro). Até mesmo as músicas mais animadas do After Hours, como as incríveis Save Your Tears e Hardest To Love, carregam um peso e são dolorosas de ouvir. As duas canções retratam sofrimento amoroso e erros difíceis de lidar, apesar de sermos expostos a um artista mais maduro e confiante do que em seu primeiro smash álbum Beauty Behind The Madness.
Mesmo chegando em seu quarto trabalho de estúdio, a temática dos álbuns permanece a mesma, e é nítido que Abel ainda tenta lidar com problemas semelhantes aos do Trilogy, de 2012. Não houve uma prisão no personagem, entretanto. After Hours mostra que ele também saiu de sua zona de conforto. Além de uma parceria inusitada à primeira vista, cantando em espanhol com Maluma em Hawaí, música que bombou no Youtube de 44 países.
The Weeknd ainda participou de Positions, trabalho mais recente de Ariana Grande, na ousada off the table. A música não é nenhuma Love Me Harder, mas tem vocais surpreendentes e se mostrou sexy e digna de uma colaboração entre esses dois gigantes da indústria. Abel Tesfaye ainda lançou o clipe de Snowchild, a de letra mais diferenciada do álbum. O nome traz referência a momentos passados no Canadá e o vídeo é recheado de menções a seus trabalhos e conceitos anteriores. Fora que a produção é uma mistura de cartoon e anime.
Abel se esforçou para entregar um trabalho impecável e digno de aclamação do público e da crítica, como também das clássicas premiações. E mesmo batendo recordes, apresentando um personagem marcante, ter sido premiado pelo AMA, no VMA e sendo o artista mais ouvido no Spotify por cinco meses consecutivos, ele foi ridiculamente esnobado pelo Grammy. After Hours, o disco mais complexo e explorado do ano, não recebeu nenhuma indicação para a edição de 2021 da maior premiação musical do mundo, que acontece no fim de janeiro.
Não é surpresa alguma que artistas negros ainda sejam deixados de lado no Grammy. Em 2017, Beyoncé perdeu as categorias principais com seu álbum histórico e atemporal Lemonade. Nicki Minaj, em 2012, mesmo com sete músicas simultâneas em todas as paradas de sucesso, perdeu o prêmio de Artista Revelação para Bon Iver. Ou ainda quando Kendrick Lamar, Jay-Z, Kanye West e Drake perderam o gramofone de Melhor Disco de Rap para Macklemore e Ryan Lewis no ano de 2014. A lista não tem fim e o privilégio branco sempre prevaleceu. Agora entendemos o motivo de Kanye West ter jogado seu Grammy na privada e ter feito xixi nele.
O incompreensível obviamente deixou a todos chocados: fãs, crítica, artistas, produtores, amigos e até mesmo o cantor, que não é de se expor e fazer pronunciamentos, exigiu transparência. O mais assombroso é que músicas rasas como Yummy, de Justin Bieber, foram indicadas e Blinding Lights não. Porém, o cantor já está confirmado como atração do halftime da próxima edição do Super Bowl, mostrando ser muito maior que estatuetas douradas que raramente premiam quem devem premiar. A bancada de votantes pegou o conceito da solidão de After Hours e deixou Abel sozinho e sem nada. Todos nós sabemos o nome disso, e não é boicote.
The Weeknd prometeu e cumpriu. Um artista que transforma em sucesso tudo que toca, com esse álbum não seria diferente. Dono dos sucessos Starboy e The Hills, Abel sempre surpreende na inovação e dessa vez ainda mais confiante e intuitivo para mostrar do que é capaz. After Hours é muito mais do que um álbum com inspirações oitentistas, o disco é uma representação de como usar o antigo pode ser atual, sem perder a essência do hoje. The Weeknd conseguiu trazer isso e muito mais para o novo trabalho. After Hours é um apelo noturno para cantar nas madrugadas mais obscuras, apenas você em seu quarto, ouvindo tudo que Abel Tesfaye tem a dizer. A solidão com certeza não é mais subestimada.