Coringa: A sociedade desperta o monstro

O filme pode conter gatilhos, cuidado (Foto: Reprodução)

 

Gabriel Soldeira

O Coringa é um dos vilões mais importantes das histórias em quadrinhos, o caos e a loucura que envolvem a psique do personagem o tornam curiosamente cativante. Ele foi eternizado por interpretações memoráveis, principalmente a de Heath Ledger que no cultuado “Batman: Cavaleiro das Trevas” (2008), cuja performance pareceu ser o rosto definitivo do palhaço do crime. Coube agora a Joaquin Phoenix deixar sua marca, mas dessa vez o vilão protagoniza um filme solo. Dirigido e co-roteirizado por Todd Phillips, “Coringa” é um profundo estudo de personagem. O filme adentra a insanidade do palhaço na forma de um thriller psicológico, e é mais um que se afasta do falido universo da DC nos cinemas.

O longa chega em um momento que as adaptações de quadrinhos estão extremamente saturadas e uma produção original que segmenta o “gênero de super-heróis” é muito bem-vinda. O filme dá nome e sobrenome para a misteriosa identidade do vilão, Arthur Fleck, que mora com a mãe doente e ganha a vida como palhaço enquanto tenta seguir seu sonho de ser comediante. Fleck sofre de vários problemas psiquiátricos dentre eles uma risada patológica que o atinge em momentos de tensão. Vemos então na decadente sociedade de Gotham, como um homem perturbado se torna o Coringa.

Mas Joaquin Phoenix realmente rouba a cena. Sua fisicalidade transcende o emagrecimento, sua postura e movimentos carregam o peso de ser esse personagem ingênuo e perturbado pela cidade doente em que habita. Mas certamente a marca registrada da atuação são os risos de Arthur: o riso forçado de quem não entende as interações sociais, o riso patológico descontrolado e doloroso nas piores situações possíveis e a forma que esse riso muda quando enfim ele entende e abraça sua insanidade. O roteiro dá muito para ser trabalhado, mas se o projeto caísse nas mãos de outro ator, dificilmente teríamos um resultado tão bom quanto o apresentado aqui. Justamente pelas nuances do personagem serem bem mais expressas pela forma que as coisas são feitas e não apenas por mera exposição do script.

O desespero do riso ainda causa frio na espinha (Foto:Reprodução)

O filme coloca a própria Gotham como antagonista, a cidade está viva e respira violência e injustiça. Arthur é constantemente atingido por isso e o roteiro trabalha de forma que sua gradual transformação é quase justificável. Digo “quase” justamente por você entender as motivações que levam à maldade do personagem, mas ao mesmo tempo suas ações violentas estão longe de serem tratadas apenas como punição catártica aos poderosos da cidade. Na verdade o enredo faz o espectador se sentir mal por Arthur, justamente por sua forma de lidar com as injustiças serem reprováveis. É de desnortear a bússola moral de qualquer um.

A direção de Todd Phillips é eficiente em mostrar Arthur sofrendo em sua própria mente e como isso afeta suas relações e vice-versa. A câmera segue o personagem como um amigo, e vê o mundo pela perspectiva dele. Mas, ao mesmo tempo mostra sem censura seus momentos de agressividade e como a violência que ele pratica também é suja. Porém, a forma que Todd conta a história é muito parecida com longas da Hollywood pós-moderna dos anos 70, talvez parecida demais. A homenagem à filmes clássicos de Martin Scorsese como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982) vai longe a ponto de sentirmos falta de um pouco mais de personalidade na voz de Phillips. Porém, não dá pra negar o valor de se fazer um thriller comparável aos clássicos do renomado diretor.

A música é outro ponto forte do filme. Cordas graves acompanham momentos de tensão, trazendo uma certa claustrofobia induzida. É o filme avisando que algo está prestes a explodir mas nem sempre a explosão vem. De outra forma, a variação entre músicas diegéticas e não diegéticas é usada de forma irônica, em momentos quase catárticos do protagonista que, vez parece estar ouvindo em sua mente a música que apenas o público escuta e vez dança a música totalmente ausente dos ouvidos da audiência. Essa metalinguagem curiosa também dá mais créditos para Joaquin Phoenix que expressa diferentes momentos do personagem com a forma que a música é absorvida pelo seus movimentos e expressões.

“I use to think that my life was a tragedy, but now I realize… it’s a comedy” (Foto: Reprodução)

O longa toca vários temas importantes e foi alvo de várias polêmicas, porém, o que se sobressai certamente é a discussão social que envolve o enredo. Arthur só abraça seu lado vilanesco, pois a sociedade falhou e ignorou seus problemas. Suas atitudes só atiçam a população pois eles também foram esquecidos pela elite de Gotham. Elite essa que se diz a única salvação para a decadência da cidade. O filme não defende a violência como meio de se conseguir direitos, mas sim como consequência da falta deles.

“Coringa” é um filme perturbador que tem muito a dizer, e faz isso de forma singular para os tempos de hoje. O longa não tem medo de se soltar das amarras que engessam os filmes baseados em quadrinhos, e de quebra conta com uma das melhores atuações da década. Parece que o Coringa de Heath Ledger finalmente encontrou alguém à altura.

Não esqueça de sorrir (Foto: Reprodução)

 

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