Giovanne Ramos
Para quem não está habituado com as gerações do K-Pop, aqui vai uma rápida aula. A primeira lição é: não há consenso entre os recortes entre as gerações do ritmo, mas elas realmente existem. Esse bloco temporal foi construído analisando o perfil sociocultural, visual, conceitual e, principalmente, o estilo musical de grupos em determinados períodos. Popularmente, é dito que existam 4 gerações, sendo a primeira delas a que fundou o gênero e a última a mais instável e de difícil definição, mas certamente é na qual Aespa está localizada e ditando as tendências com o seu mini-álbum de estreia, Savage.
Desde as primeiras coletivas da empresa SM sobre o seu novo girlgroup Aespa, já se esperava um grupo de alto nível e com um conceito futurista envolvido, e de fato isso vem se concretizando. As 4 integrantes do projeto, Karina, Winter, Giselle e NingNing, foram anunciadas junto de seus avatares, bonecas virtuais representativas das artistas. ÆSPA, vem literalmente das palavras avatar, experience e aspect, sendo assim, um grupo compromissado em explorar a realidade e o melhor do universo virtual com as tecnologias disponíveis.
O conceito não foi bem visto pelo público. A ideia de uma representação virtual das idols, que já levam uma rotina exaustiva na realidade, assusta. Havia-se o medo dos fãs, tão exigentes, acabarem perdendo ainda mais a noção de distância com as suas ídolas as tendo ali por perto. Mas todas essas incertezas e medos foram por água abaixo em novembro de 2020 com Black Mamba, single de estreia. Toda a subjetividade conceitual do quarteto se materializou em um clipe super produzido com ótimos jogos de câmera, um estética coesa e garotas totalmente talentosas e uma música de tom questionável.
A melodia não é lá das inovadoras, é possível que, vasculhando o arsenal da terceira geração, em grupos como BLACKPINK, Everglow e até o os veteranos da mesma empresa, NCT, você encontre algo semelhante, mas o que faz da faixa única é a sua letra. Cheia de referências, easter eggs e códigos, Aespa cria o seu próprio universo como se estivessem em sua própria aventura RPG, onde a black mamba é a vilã suprema e elas, as heroínas. Termos como FLAT, SYNK, KWANGYA, não fazem o menor sentido, mas são elementos que constroem a narrativa nos seus lançamentos seguintes: a balada-cover Forever, a obra-prima de 2021 Next Level e fechando todo o ciclo de preparação com o EP Savage.
Antes de falar propriamente sobre o primeiro trabalho extenso do grupo, é válido mencionar o hit Next Level. A música é um cover adaptado da faixa de mesmo título lançada na trilha sonora do filme Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw. A faixa, no entanto, foi adaptada e, de um trap simplista, se tornou uma viagem mesclada em hip-hop dance e upbeat-jazz. Com isso, as novatas aumentaram o nível e estabeleceram uma expectativa enorme para o disco de estreia.
E elas foram cumpridas! Através dos teasers que antecipam o lançamento, já era previsto que o grupo mergulharia numa sonoridade futurista, utilizando muitos sintetizadores e outras parafernalhas tecnológicas disponíveis aos produtores. Mas funciona. De cara, somos recebidos pela energética aenergy, a primeira faixa do EP. E o título não poderia ser melhor. Se existem gritos de guerra para todo artista, essa cumpre o papel para Aespa. Autoreferenciação, batida envolvente, letra preenchida com mensagens de autoestima, tudo isso define um hino e mostra que teremos uma surpresa agradável com as outras 5 faixas seguintes.
A seguir temos a faixa título e a de trabalho, Savage. Iniciando em tom debochado “Oh my gosh, don’t you know I’m a Savage?” (Oh meu Deus, você não sabia que eu sou selvagem?), temos uma música que pode causar estranhamento inicial. É uma daquelas canções que você escuta uma vez e tenta digerir o que foi que aconteceu. Ao contrário de Next Level, single anterior, não é feita de altos e baixos surpreendentes. Mas na segunda escuta, na terceira, na quarta e, sem perceber, você já está cativado e viciado em elementos diversos da produção. O “zuzuzuzu”, no refrão, a ponte melancólica interpretada em vocais poderosos e a batalha de notas altas no final da música, tudo isso faz com que você revisite diversas vezes a canção, principalmente junto do videoclipe, que traz uma linearidade da narrativa construída desde o seu debut e um provável encerramento de fase. A música é um hit pronto.
Uma característica interessante de todo o conceito e desenvolvimento de Aespa e de suas músicas é a sensação – e talvez realmente seja – de que as integrantes estão numa aventura contra um inimigo e existe toda uma jornada ali envolvida. I’ll Make You Cry reforça essa teoria. Pode parecer paradoxal, mas ao mesmo tempo que a faixa, que abusa do dubstep, é moderada, ela é intensa. As frases de efeito pós-refrão, quase como se fossem uma descrição de um ato, criam uma dimensão de que elas realmente estão vivendo em um jogo e você consegue reproduzir a imagem simplesmente pela maneira como a música é vocalmente interpretada. Uma ótima sequência para Savage.
Dentro do álbum sempre temos aquelas músicas díspares, mas que de maneira alguma significa que não combinam com a sonoridade e impactam negativamente na coesão do trabalho. É o caso de YEPPI YEPPI e ICONIC. A primeira citada destoa do tom sério e ousado construído até então, é quase que um encerramento da quest de Aespa. Agora elas estão descontraídas numa música hyperpop e hiper animada. As intérpretes estão longe do color pop e aegyo conhecidos no K-Pop, mas certamente fizeram a sua própria interpretação do que seriam esses gêneros na visão do Aespa. A música é divertida e certamente coloca quaisquer ânimos para cima com o casamento do canto falado e o beat envolvente. Iconic por sua vez, tenta retomar a densidade encontrada na primeira parte do álbum, mas perde o seu gás. Longe de ser ruim, mas as faixas anteriores parecem cumprir o seu papel bem melhor.
Por fim, Savage se encerra com a sensacional Lucid Dream, um pop mesclado de um R&B alternativo. Aqui, visualizamos o melhor que uma produção pode oferecer com os seus sintetizadores, mixagens e amplificadores, tudo isso para uma balada. A música foi bastante comparada com algo que a sub-unit do grupo Loona, Odd Eye Circle, lançaria. Uma balada que ao mesmo tempo mostra a intensidade, sensualidade vocal e uma tridimensionalidade delirante para todos aqueles que estão vivendo um sonho lúcido, como diz a tradução do título da faixa.
Savage entra em um legado de álbuns onde todas as b-sides estão bem trabalhadas e são de grande qualidade, algo que o K-Pop, conhecido por trabalhar somente os singles e lotar o restante do material de produções fillers, está começando a investir. Era esperado um trabalho de alto nível e ele foi cumprido, não à toa está quebrando diversos recordes. O álbum já se tornou o maior primeiro trabalho em vendas por um grupo feminino em sua primeira semana e está constantemente alcançando marcas impressionantes até mesmo para grupos veteranos da última geração. Temos ótimos nomes nessa nova leva feminina do K-Pop, como Itzy, Stayc e Weeekly, mas em questões de números? Aespa tomou a dianteira e a concorrência terá que correr atrás, principalmente as que estão para estrear.