Guilherme Veiga
Se existe uma coisa que é intrínseca à grande parcela de nós, é a escola. Presente em uma parte considerável de nossas vidas, é nela que desenvolvemos a totalidade de quem somos. Dos professores que amamos aos que odiamos, dos amigos que duram para a vida inteira aos que nos despedimos a cada formatura, dos discursos de ‘vocês são a pior sala da escola’ às provas aparentemente impossíveis de ciências para a época; sem dúvidas, aquele ambiente quase que fabril a lá Tempos Modernos, das filas, do hino nacional antes da aula e das decorebas de fórmulas, é um dos grandes responsáveis por nos moldar.
Um ambiente tão factível também é uma faca de dois gumes nas telas. Se, por um lado, a representatividade é quase instantânea – vide os corredores das séries teen da Nickelodeon como ICarly e Victorious ou as aulas da Srta. Morello em Todo Mundo Odeia o Chris -, por outro, é extremamente complicado ir além dessa visão comum de tantos. Porém, é exatamente esse desafio que Abbott Elementary, o novo e já queridinho nome das sitcoms, se propõe.
A série, criada, roteirizada e estrelada por Quinta Brunson, pode ser perfeitamente resumida em três palavras: inversão de papéis. Isso já é perceptível logo em sua abordagem. Se passando em uma escola pública do sul da Filadélfia voltada a população negra, Abbott Elementary é um pseudo-documentário que aborda a vivência e os desafios do período escolar, dessa vez, pelo olhar dos professores, cuja inspiração foi a própria mãe de Brunson, professora da rede pública de ensino por 40 anos.
Outro ponto, entre os principais, é a representatividade. Se nas comédias da Era de Ouro da Televisão, as minorias realmente eram tratadas como tal, a exemplo de Daryl, Oscar e Kelly em The Office, Tom e Donna em Parks and Recreation ou Troy e Abed em Community, aqui ocorre o extremo oposto. Os brancos é que estão em menor número e não há a necessidade de tratá-los com diferenças ou como uma ‘cota a ser cumprida’, por mais que o roteiro genialmente saiba usar isso a seu favor.
Esse trunfo é culpa de sua escrita. Com um texto muito perspicaz, Abbott Elementary tem um humor extremamente veloz que nos bombardeia com piadas em um ambiente por muitos idealizado e, às vezes, até temido: a sala dos professores. Isso sem exigir muito de sua audiência, se tornando uma série para todos. Porém, a produção consegue refinar seu roteiro, saindo do raso e do escrachado comum das obras desse gênero.
Nos mockumentaries, quando é preciso desenvolver o enredo, o caminho mais natural é o sentimentalismo. Mas por Abbott Elementary já ser mais profunda em sua premissa, ela se diferencia das demais. O principal ponto é a dificuldade de um ensino público sucateado que, por mais que seja mascarado pelo sonho americano, existe. Para além dele, a série é consciente ao abordar o racismo, o etarismo e as questões pessoais de seus personagens como problemas familiares ou amorosos, desmistificando também o papel do professor fora dos muros da escola.
Tais tópicos evidenciam que o seriado entende quais temáticas precisam ser tocadas. Durante a exibição da segunda temporada, uma nova onda de massacres em escolas não somente se iniciou como também, infelizmente, atravessou as fronteiras do Tio Sam. Alguns telespectadores, sem um pingo de empatia, pediram que o assunto fosse abordado na ficção e tiveram o pedido prontamente negado pela criadora. Tendo consciência sobre o que e como falar, Abbott Elementary é a série que mais sabe incorporar a crítica no humor em um escopo no qual muitas produções só conseguem fazer o caminho contrário.
Um dos grandes desafios das comédias norte-americanas, principalmente as de ambiente, é provocar o sentimento de familiaridade para com seus personagens. Quase todas sofreram com isso – salvo exceção de Modern Family, por já se tratar de uma família – e é extremamente comum conceber essas produções como ‘séries que você precisa passar da primeira temporada’. Porém, com Abbott Elementary é diferente, desde o piloto que, inclusive, ganhou Emmy de Melhor Roteiro em 2022, tudo é muito bem estabelecido e o elenco já chega afiado no que se propõe. Portanto, a segunda temporada, ao invés de ser essa relargada, continua um aprofundamento das personas já bem trabalhadas no ano anterior.
A Janine de Quinta Brunson é talvez um dos retratos mais humanos de uma protagonista heroína: deslumbrada, porém imperfeita e aprendendo com seus erros. Gregory, interpretado por Tyler James Williams – sim, o Chris -, assume o desafio de não expressar seus sentimentos, mas, ao mesmo tempo, trabalha tão bem com a câmera que chegou para bagunçar o pódio, antes composto somente por Jim Halpert e Fleabag.
Destaques também para Lisa Ann Walter (Operação Cupido) que imprime uma bad girl italiana como ninguém e é uma perfeita junção de todos os personagens cheios de si que sempre existem nesse gênero. Chris Perfetti (O Som do Silêncio) é extremamente convincente no papel de um Jacob bem intencionado e desesperado para se incluir. Por fim, William Stanford Davis (Ray Donovan), na pele do zelador Mr. Johnson, mostra que quando o ator entende e assume o texto que foi escrito para ele, pouco importa o tempo de tela.
Na cerimônia do Emmy de 2022, durante a premiação de Sheryl Lee Ralph como Melhor Atriz Coadjuvante em Comédia, é natural evocar a curiosidade para saber o papel que a dona daquele discurso extremamente potente assume na série. Em primeiro momento, é difícil encontrar, até perceber que a razão do prêmio foi o fato dela conseguir encapsular sua personalidade monumental em uma contida e rigorosa mas, ainda sim, divertidíssima Barbara. Ralph consegue traduzir suavemente um estereótipo tão característico e aos poucos desconstruí-lo.
Contudo, quem cada vez vem crescendo exponencialmente na produção e está a muito pouco de seu devido reconhecimento é Janelle James encarnando a diretora Ava Coleman. Não se engane, ela é a vilã da série, mas sua personalidade é tão expansiva e divertida que é impossível não adorá-la. Isso é total mérito de James, que conseguiu incorporar ao texto todas as figuras hierárquicas das comédias, indo do Michael Scott ao reitor Dean de Community, mas sem deixar de trazer um toque próprio e extremamente cativante para essa miscelânea.
Por já começar no topo, a segunda temporada de Abbott Elementary precisava provar que não seria passageira, a exemplo do que Ted Lasso também teve que fazer recentemente. A pressão ficou pior quando a ABC, dona dos direitos, em uma espécie de visita aos anos 2010, resolveu usar a produção como cobaia de um possível retorno das temporadas de 22 episódios. Essa decisão foi um sinal de alerta para a produção, que evidencia que a fórmula da série pode se desgastar em um futuro próximo. Porém, dessa vez, a competência da escrita e do elenco se mostrou capaz de driblar esses percalços.
Até o momento, a obra tem sido aluna exemplar e mostra que aprendeu muito com quem a antecedeu. No entanto, com a produção surgindo como um respiro no gênero – tanto nos mockumentaries quanto na comédia em geral, que há tempos vinha sendo monopolizada pela vertente dramática – ela também tem muito a ensinar. Mais do que isso, Abbott Elementary veio no tempo exato de nos passar a mensagem certa e que honra é poder ter essa aula.