Nathalia Tetzner
Sabe aquela pessoa que, quando está calma, os trovões de tempestade podem ser ouvidos ao longe? Que tem o prazer de encher os teus pulmões, mas também sufocá-los? Ela é a perfeita personificação da vida em seu estado mais bruto. Alguns a conhecem precocemente, outros, no tempo certo, e há ainda aqueles que preferem ignorar a sua face áspera e se resumem a dizer “ah, ela é brincalhona assim mesmo”. Na trama de A Vida Brinca Muito Comigo, de David Grossman, três gerações de mulheres procuram digerir as consequências do encontro fúnebre com a origem de tudo.
Publicada no Brasil em Maio de 2022, o Persona teve a oportunidade de ler a obra através da parceria com a editora Companhia das Letras. Nela, Grossman faz jus ao título e escreve como se estivesse passando pela situação junto de suas personagens; por isso, provoca no leitor uma dor de barriga inconfundível, que somente pode ser causada após uma gargalhada longa, volumosa e motivada pela angústia. Afinal, a narrativa ambientada entre o passado de destruição deixado pelo ditador da antiga Iugoslávia, Josip Broz Tito, e o presente ainda assombrado pelos fantasmas da época, denota que faltam motivos para mostrar os dentes.
Avó, mãe e filha compõem o núcleo principal de A Vida Brinca Muito Comigo, cuja partida e equilíbrio é Vera, mesmo com o ponto de vista recaindo em grande parte nos olhos da neta Guili. A construção da progenitora no livro reflete a realidade vivida por Eva Panić-Nahir, com quem David Grossman nutriu uma amizade de duas décadas. Após sua morte, o autor resolveu contar sua história com a ajuda de lápis, papel e um teor de ficção. Judia, Eva se casou com o soldado sérvio Miloš e, da união, nasceu Nina. No entanto, os ventos da Segunda Guerra Mundial não demoraram para chegar e desolar o futuro que viam pela frente.
“De repente uma ideia torta e pungente: ela é uma lápide. Um monumento a Nina. Puseram-na lá por causa de Nina. Porque Nina foi jogada na rua. E assim todo passageiro dos navios de luxo verá e saberá qual é o castigo para uma pessoa como ela, como Vera, para uma mulher que amou demais.”
Em um paralelo com A Escolha de Sofia (1979), de William Styron, Vera decidiu não delatar o marido falecido para a UDBA (Departamento de Segurança do Estado) e, assim, deixou Nina para trás ao encarar o campo de prisioneiros da ilha Goli Otok. O escritor nascido em Jerusalém é esperto e delimita o fato como o estopim para a falta de maturidade da filha e da neta, ambas estagnadas em um século passado pelos efeitos de tal evento. Se Eva Panić-Nahir cometeu um erro, esse foi amar em excesso. Na mesma balança, a personagem inspirada pela sua história é uma das mulheres mais apaixonadas já desenvolvidas na Arte.
Quase engasgado com a sua própria linguagem, David Grossman carrega o peso do seu estilo pacifista e tira sarro da circunstância ríspida da união entre as suas personagens e a vida. Para isso, ele felizmente conta com Guili, que atravessa a mãe e a avó em busca de curar os traumas das gerações: “Perdão por de repente adotar aqui a terceira pessoa, mas a primeira dói demais”, escreve. Elegantemente, ele mistura a técnica do Cinema com a da Literatura e basicamente registra a elaboração de um documentário que, no imaginário do livro, não sai do papel, cujo sentido de todo o seu esforço permaneceu intacto com a tradução de Paulo Geiger.
“Eu trato de ficar diante dela numa postura de corpo impaciente. Esta mulher vai me deixar adolescente para sempre, ou pelo menos uma menininha de três anos, por toda a vida.”
As personagens de Grossman parecem ter vida própria. Nina, agindo pelo reflexo de ter sido abandonada por Vera, repete o ato que a consumiu de aflição com Guili, ao sumir de sua vida ao lado do grande amor de infância, Rafi. Em contrapartida, ele, diretor cinematográfico sem sucesso, transmitiu para a filha o amor pela área e pelo papel de continuísta. O autor desliza um pouco quando posiciona os dois no controle da direção no ápice de Life Plays With Me, enquanto a trama surpreendentemente revela a gradual perda de memória de Nina e o desejo de gravar a descoberta da sua verdadeira trajetória pela Terra.
Imponente e trágica em meio ao mar azul, a ilha Goli Otok, onde Vera passou anos presa, é descrita com uma sensibilidade excepcional. Desde os galpões com centenas de mulheres, passando pelas rochas afiadas até o cume da montanha onde ela permaneceu sob o sol para proteger a planta de uma oficial da Iugoslávia de Tito, o cenário pode ser visto com nitidez pelo leitor. Os incontáveis dias de trabalho forçado milagrosamente se confundem com a figura resiliente da avó no presente da obra, afinal, “‘de modo geral’, Vera diz baixinho, consigo mesma, ‘a vida brinca muito comigo.’”
David Grossman traz o relato singular de três mulheres fadadas a se chocarem com a face áspera da vida. Quando se despede de toda a sua pompa artística para viver o momento com suas personagens, ele leva o leitor pela mão para uma jornada com um fundo de realidade que dialoga com a humanidade desde o início dos tempos: a vida é imprevisível. A obra não deixa outra alternativa a não ser a de gargalhar até doer a barriga das circunstâncias impostas pelo simples ato de respirar. A Vida Brinca Muito Comigo não precisa de grandes reviravoltas, pois a sua natureza brutal foi o suficiente para se fazer rir de felicidade e de dor.