Gabriel Gatti
William Shakespeare foi um grande dramaturgo nascido no século XVI, e chegou a publicar cerca de 40 obras, que acabaram sendo amplamente revisitadas ao longo dos séculos. Como é o caso de Macbeth, uma tragédia medieval sobre ganância e culpa que rendeu uma série de adaptações cinematográficas. Dentro dessa ampla gama de subprodutos derivados do acervo literário shakespeariano parece quase improvável produzir algo com características originais, porém foi exatamente isso que o diretor Joel Coen fez em A Tragédia de Macbeth, uma produção da A24 em parceria com a Apple TV+.
Ao primeiro contato, o longa parece bem distante do estilo comumente desenvolvido pelo diretor em conjunto com seu irmão, Ethan Coen. Juntos, os irmãos Coen produziram diversos filmes que utilizam do humor sarcástico para questionar certos padrões normalizados dentro da sociedade estadunidense. Porém, A Tragédia de Macbeth o coloca sozinho na cadeira de direção em frente a uma das peças mais dramáticas de Shakespeare. Para essa produção, Joel se arriscou em uma película minimalista, em que até as cores não foram bem-vindas para recontar essa grande tragédia, um formato inusitado para a obra.
Outro ponto importante para adentrar a narrativa é compreender o estilo do autor original. Shakespeare teve seu trabalho dividido ao longo de três fases, sendo a primeira (1590-1602) delas dominada por peças históricas e tragédias em estilo renascentista, a segunda (1602-1610) caracterizada por tragédias e comédias e a terceira (1610-1616) ocupada por peças de caráter conciliatório. Macbeth, especificamente, foi lançada em 1623, mas acredita-se que tenha sido escrita entre os anos de 1603 e 1607. Sua trama dramática com a sede de poder como peça central enquadram a narrativa como sendo parte da segunda fase das obras shakespearianas.
Desse modo, a trama se inicia na Escócia durante o século XI com o retorno dos generais Macbeth (Denzel Washington) e Banquo (Bertie Carvel) de uma batalha em que saíram vitoriosos. No caminho de volta para casa, eles são surpreendidos com três bruxas (Kathryn Hunter) que declamam a profecia de que Macbeth se tornará barão e, depois, rei. Assim que o primeiro presságio se concretiza, o protagonista da trama se sente motivado a matar o monarca vigente para assumir o trono, apesar de se mostrar apreensivo com a ideia em certos momentos.
No entanto, sua esposa, Lady Macbeth (Frances McDormand), demonstra seu lado maquiavélico ao insistir para que o marido cometa o crime. Sendo assim, após apunhalar durante a noite o Rei Duncan (Brendan Gleeson), a quem Macbeth era próximo, a profecia anunciada pelas bruxas se concretiza e o assassino se torna o soberano. Após conquistar a sonhada coroa, o peso da culpa passa a atormentar Macbeth, que começa a sofrer com terríveis ataques de consciência beirando a loucura.
Para dar vida a narrativa, Joel Coen escalou Denzel Washington e Frances McDormand para viver o casal Macbeth, que entregaram a dramaticidade necessária para o papel. Além da dupla já amplamente conhecida, outro grande destaque de atuação no longa foi o das bruxas, encarnado por Kathryn Hunter. A personagem da atriz se apresenta como um indivíduo, mas sua sombra se fragmenta em três, servindo como uma releitura original das personagens criadas por Shakespeare. Além disso, a atuação de Hunter, que já era uma artista muito conceituada no teatro, se assemelha em partes ao Gollum de O Senhor dos Anéis devido sua entonação vocal e os movimentos corporais de contorção. Essa encenação apresentou o tom macabro logo no início do filme, que perdura até sua conclusão.
Outros elementos discretos dispostos ao longo de A Tragédia de Macbeth acentuam o lado sombrio da película e, ainda, se aproximam da obra do dramaturgo inglês. Em suas narrativas literárias, Shakespeare cita diversas aves que deixam sua marca na trama. No caso de Macbeth esse cenário não foi diferente. Os corvos estão muito presentes no desenrolar do plano macabro do cavaleiro que almeja ser rei, o que insere ainda mais o telespectador no clima tenso do longa.
Apesar da trama destoante do que o diretor está habituado a apresentar, A Tragédia de Macbeth toma certos rumos que guiam a narrativa para o lado tragicômico, já tão conhecido na cinematográfica de Joel Coen. Dessa forma, o cineasta busca formas de se arriscar por novos caminhos, mas sem abrir mão totalmente da zona de conforto. Nesse sentido, a construção da narrativa se dá sob um roteiro shakespeariano que serve de coluna espinhal para o longa, e uma estética medieval construída a partir de um cenário meticulosamente planejado para criar uma atmosfera teatral.
A construção do castelo, em que se passa a maior parte da história, foi um ponto chave para o filme. A estética do prédio destoa em certos pontos da arquitetura medieval e a aproxima do design apresentado no Expressionismo Alemão, com porta e janelas compridas, escadarias altíssimas e a ausência de mobília. Esse lado cru dos cenários trouxe um lado que remete a um palco de teatro e as falas dos atores como se estivessem recitando uma poesia, se assemelhando às atuações cênicas.
Essa construção de um plano cinematográfico quase chapado serviu como uma tela em branco para que o diretor de fotografia Bruno Delbonnel fizesse o seu show de luz e sombra. A técnica tão empregada nas pinturas renascentistas e barrocas deram o toque artístico necessário para o longa, que ainda foi enquadrada no padrão 4×3. Como resultado, a estética da película se assemelha muito ao filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, que por um acaso também é narrada durante o período do medievo.
Além disso, o minimalismo presente em toda a caracterização de A Tragédia de Macbeth se estende também à sua trilha sonora solene, assinada por Carter Burwell. Durante boa parte dos diálogos do filme, o único som capaz de ser ouvido é a fala dos personagens e os ecos de fundo que transcendem a atmosfera caótica, porém o trabalho sutil do compositor na obra completa as arestas de silêncio que permeiam a narrativa.
Como resultado desse meticuloso trabalho exibido no longa, The Tragedy of Macbeth foi amplamente elogiada pela crítica especializada, chegando a receber uma aprovação de 94% no site do Rotten Tomatoes. Seu elenco super renomado já garantiu diversos troféus por sua atuação. O protagonista Denzel Washington já levou para casa duas estatuetas do Oscar, além de já ter vencido outros prêmios, como o Globo de Ouro e o Urso de Prata no Festival de Berlim. O mesmo cenário de premiação acontece com Frances McDormand, que é dona de três Oscars pela pela categoria de Melhor Atriz. O diretor do longa shakespeariano também não fica de fora das condecorações, ostentando prêmios do Festival de Cannes, BAFTA, Critics Choice Awards, entre outros.
O mesmo quadro de premiações se repetiu com o Oscar 2022, com exceção de McDormand que, vindo da vitória dupla por Nomadland em 2021, não recebeu nenhuma indicação este ano. A Tragédia de Macbeth foi contemplada em três categorias, sendo elas a de Melhor Ator para Denzel Washington, de Melhor Fotografia para Bruno Delbonnel e de Melhor Design de Produção para Stefan Dechant e Nancy Haigh. Todos já colecionam um histórico grande de indicações a prêmios por seus desempenhos estonteantes no ramo cinematográfico.
Sendo assim, A Tragédia de Macbeth se mostra como uma das melhores produções de Joel Coen, que, pela primeira vez, assumiu a direção sem Ethan e, ainda, se distanciou de seu estilo cinematográfico previsível ao se envolver em uma atmosfera sóbria e artística. Toda a personalidade empregada pelo diretor no filme o tornam único dentro de um universo de outras adaptações da mesma obra e, ainda assim, mantém a trajetória de Macbeth tão próxima da narrativa que nasceu do imaginário de William Shakespeare.