Amabile Zioli
Adaptar a história de uma tragédia real para o audiovisual sempre envolve muita responsabilidade. Depois de reduzir os acontecimentos catastróficos da Tailândia de 2004 a um clichê dramático hollywoodiano em O Impossível, J. A. Bayona se redimiu com A Sociedade da Neve, trazendo para as telas, mais uma vez, mas sob outra perspectiva, a tragédia ocorrida nos Andes em 1972. A produção espanhola foi aclamada internacionalmente, o que rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional e Melhor Maquiagem e Penteados.
Em 13 de Outubro daquele ano, o voo que levava a equipe amadora de rugby e seus familiares de Montevidéu, no Equador, para Santiago, no Chile, colidiu com uma geleira e caiu na Cordilheira dos Andes. No momento da queda, alguns passageiros morreram imediatamente, e, os que sobreviveram, teriam que lutar pelas suas vidas pelos próximos 72 dias à espera do resgate. No total, 29 pessoas faleceram e 16 foram resgatadas com vida.
O que diferencia a obra mais recente das outras adaptações do fato pode ter sido a escolha do protagonista: ao invés de contar a história pelo ponto de vista de um sobrevivente, Bayona prefere seguir Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), falecido no dia 11 de Dezembro, 11 dias antes do resgate. O uruguaio era retratado como uma figura corajosa e pacífica, e, para quem não está familiarizado com o caso, sua morte é um baque e completamente inesperada, afinal, na fórmula de Hollywood, o narrador nunca morre.
O símbolo do protagonista é o ponto de equilíbrio entre a sociedade de sobreviventes formada nos Andes. No dia a dia hostil e inóspito do ambiente em que se encontravam, havia aqueles que nunca perdiam as esperanças – e Numa era um deles. Se alojando na fuselagem do avião e sobrevivendo à base de restos de comida que trouxeram nas malas, um sistema de coleta de água e aflição, agonia e medo, o desafio enfrentado pelo grupo é desesperador de acompanhar.
Sem forçar um apelo gráfico, A Sociedade da Neve tem justificativa para as cenas agonizantes. Um dos momentos mais torturantes do longa é a colisão do avião: ossos quebrando sendo o único vestígio de trilha sonora, partes da lataria e passageiros se desprendendo e voando violentamente para o mar branco e cegante, feições aflitas, desesperadas e angustiadas tomam conta da tela e fazem o espectador ter vontade de cobrir os olhos.
Bayona não cai na tentação do sensacionalismo propagado pela imprensa e foge da explicitação ao representar um dos pontos mais comentados sobre o caso: o canibalismo praticado pelo grupo em busca de conservação. São os elementos ao fundo das cenas que trazem sentido à narrativa, apenas ver o embolado de meias onde a carne está armazenada é suficiente para o estômago se embrulhar. A relutância dos membros da sociedade, inclusive de Numa, para aderirem à ideia, se justificando, além dos próprios ideais, no catolicismo, reforça a agonia que sentiram quando perceberam que era sua última chance de sobreviver.
Após acompanhar a jornada incompreensível dos 16 sobreviventes, é reconfortante assistir o momento em que descobrem que foram localizados. A forma com que, mesmo após a perda de peso quase fatal, a falta de higiene pessoal e cuidados básicos, o pensamento de que encontrarão suas famílias novamente dá forças para que eles escovem os dentes, penteiem os cabelos e arrumem suas roupas. A humanidade volta aos seus corpos. O resgate é catártico e libertador; é um milagre.