Jamily Rigonatto
As mulheres devem ser doces, gentis o suficiente para servirem um homem de meia idade com reclamações diárias sobre um trabalho medíocre e o resultado de um jogo de futebol igualmente irrelevante. Quanto aos filhos: a gestação é a maior benção permitida aos corpos femininos, quem não iria querer isso? Caso Cecília pudesse ser resumida a uma palavra, “antônimo” seria um termo interessante. Ela não é doce e não pretende ser, afinal açúcar é combustível diabético, afeta o funcionamento pancreático e escraviza. Seu papel em A pediatra – livro publicado pela Companhia das Letras em 2021 – é performar o descontrole da autoridade dentro de si.
A autora do título, Andréa del Fuego, espelha na construção da personagem alguém que enxerga a vida em linhas retas. Cecília é médica pediatra como o pai, mas ao contrário dele, não tem paixão pela profissão e muito menos pelas crianças. Talvez esse seja o cerne de sua narrativa: a ausência da paixão. Sua persona é motivada pela técnica: as coisas existem para suprir as necessidades do corpo e nada mais. Enquanto nos misturamos aos seus comportamentos milimetricamente moldados, viver parece tomar um tom tão prático que beira a arrogância.
O texto trabalha muito bem com a objetividade da personagem e compõe isso com uma narrativa direta – as atitudes de Cecília se alternam com seus pensamentos a todo momento. Com o passar das páginas, somos íntimos e superficiais, elementos da história com área exclusiva para o funcionamento cerebral e, ao mesmo tempo, telespectadores de uma novela do horário nobre. Assim, não há como fazer juízo de valor. Bondade e maldade são veredictos permanentes demais para serem aplicados em A pediatra.
Independência e liberdade são pontos muito importantes para Cecília, por isso, o casamento que ela mantinha não passa das primeiras páginas. O marido tinha depressão, a necessidade de cuidado a condicionavam ao aprisionamento e limitação, e isso não era admissível. A personagem automaticamente compara relações desse tipo as que as mães com filhos diabéticos têm. Vínculos cheios de preocupação, capazes de escravizar e fazer as vidas girarem apenas sobre o controle da insulina e o medo das convulsões nas madrugadas.
A protagonista mantinha um relacionamento extraconjugal com Celso, um homem também casado que conheceu por pura casualidade. Com seu divórcio, os amantes deixam de estar no mesmo patamar e os abalos surgem trazendo impactos. Enquanto ele tinha uma esposa grávida e uma família para manter, ela era uma profissional bem sucedida cuja maior prioridade era a própria qualidade de vida. Para ele, o caso significava insegurança; já ela, não tinha nada a perder.
Muitas das atitudes da médica são motivadas por desejo e ego. Celso nunca significou amor ou romance, mas conseguir controlá-lo e ter suas vontades atendidas geravam um tipo de satisfação inconsciente. Ela sabe se mostrar indispensável e é assim que acaba na sala de parto de Camila – a esposa traída – como neonatologista de Bruninho.
“Inaceitável que uma legião não estivesse espetando minha densidade de sobremesa, seio que criança nenhuma pisoteou até murchar, vagina nulípara, nunca posta à prova, músculo rosa, mucosa vítrea como a maçã de quermesse, eu permanecia inédita.”
Aos poucos a firmeza de Cecília se mostra cada vez mais bamba. Entre os conflitos que a rodeiam, a chegada de um novo médico especialista em recém nascidos na Zona Sul de São Paulo cria um ambiente competitivo. Buscando entender o sucesso do novo profissional, a protagonista se insere em seu espaço de trabalho de maneira absurda e questionável – apesar de narrada com uma objetividade ímpar. As técnicas humanizadas e as doulas de parto do lugar são lidas com cinismo. Para a pediatra, dramatizar a simplicidade é assumir a ineficácia como aliada.
A interação com sua empregada, Deyse, também acaba revelando rachaduras nos muros da médica. A jovem funcionária engravida do marido da própria irmã, constrói uma dependência alcoólica e tem perspectivas baixas. Quanto mais Cecília a conhece, mais julgamentos desenha. A aproximação também denuncia o medo de criar vínculos, mostrar fragilidade ou ser imperfeita.
Uma visita de Bruninho é a arma que quebra o escudo de estabilidade mantido pela personagem. A mulher, incapaz de gostar de crianças, vê naqueles dedinhos pequenos algo especial: um sentimento cheio de vulnerabilidade e falta de controle. Em pouco tempo tudo se torna uma obsessão repleta de atitudes impulsivas e hiperbólicas. A adulta racional se deixa levar por algo sem explicação ou sentido, apenas atravessando qualquer limite por mais uns minutos perto do cheiro de bebê daquela criança que ela mesma ajudou a colocar no mundo.
A pediatra toma uma nova face sem perder o sarcasmo. Cecília continua sendo para o mundo o que sempre foi, mas Bruninho ganha uma passagem para os bastidores atrás da sua mente objetiva. Ela manipula as pessoas, o espaço e as coincidências em busca do desejo de estar perto do bebê. Agora somos nós que assistimos aos passos de fora e tentamos entender os motivos.
O que era pura certeza passa a ter um universo próprio de contradições em um contexto explicitado pela autora com uma destreza impressionante. A leitura é rápida e hipnotizante, afinal, fica no ar a curiosidade e vontade de saber o que acontece nas próximas cenas. Mais que isso, os pensamentos soltos de Cecília são alvo de identificação: todo mundo guarda coisas incongruentes no burburinho da mente.
Se a protagonista representa a assertividade, Bruninho significa fragilidade. O tipo de coisa adiada que em algum momento deixa de caber na caixa de contenção. O enredo quase novelístico do romance deixa claro que, por mais firmes que estejam os trilhos, quem decide o caminho é o condutor e não o passageiro. A vida não é lógica, prática e muito menos manobrável, as vezes, estar vivo é puramente ficcional.
“Meu caso é comum, estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme. Não é diferente de quem cuida de vacas porque de sua janela era o que havia, festejando o fato de que não era mais preciso caçar, apenas manter o gado.”
A obra não precisa se pautar em um drama sintomático para nos deixar sem palavras. Entre a lógica exacerbada e a perda do equilíbrio, existe uma sinceridade fascinante. A pediatra introduz com sutileza reflexões sobre o papel da mulher na sociedade, a desigualdade social, a normalização do machismo e o ideal de maternidade. Cecília e a forma como se relaciona com o mundo é um reflexo de múltiplas partes da sociedade, um quebra cabeça composto de várias vozes unificadas em uma só.
Em 160 páginas, Andréa compacta a complexidade de ser. Cecília foge dos padrões esperados para uma mulher e isso pode fazer com que alguns a considerem uma antagonista. Não é como se as atitudes da personagem fossem mediadas pela vontade de fazer mal aos outros, terceiros são apenas figurantes de uma história individual.
Por mais absurdos que sejam certos comportamentos da médica, suas motivações são guiadas pela fragilidade e egoísmo. E é por isso que essa leitura não permite julgamentos, só quem nunca agiu motivado por interesses próprios pode atirar a primeira pedra. Ao fim, para alguém que detesta humanização, A pediatra é tão humana quanto qualquer um.