Caroline Campos
“Agora vamos deixar você feia, minha mãe disse”. As primeiras palavras do livro de Jennifer Clement, Reze pelas mulheres roubadas, são marcadas pela dor – e é exatamente nesse sentimento que a livre adaptação cinematográfica de Tatiana Huezo se pauta. A Noite do Fogo, presença fortíssima na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é um filme de muitas cicatrizes, todas elas compondo a grande ferida aberta e pulsante de cores e dores que é a América Latina.
Coprodução entre México, Brasil, Catar e Alemanha, o primeiro longa de ficção de Huezo, conhecida por seus documentários excepcionais, acompanha um vilarejo nas montanhas mexicanas, onde mulheres dominam a narrativa e homens espreitam vagarosos como caçadores. No centro dessa potente violência sugestiva, estão os olhos grandes e inocentes de Ana, interpretada ainda criança por Ana Cristina Ordóñez González. Assim como as outras meninas da região, Ana aprende desde cedo que se parecer com um menino pode ser a única alternativa que a resta.
Coberta de veneno despejado pelo céu e escondida em buracos cavados na terra, Ana não precisa atingir a maturidade para entender que seus cabelos não tem o direito de chegar à cintura e seu olhar precisa estar sempre voltado ao chão. O objetivo de sua mãe é apenas um: garantir que a garota não seja levada de dentro de casa pelos homens que dirigem ensandecidos ao longo das estradas de terra. Sobrevivente feroz, Rita (Mayra Batalla) passa grande parte do filme imersa em suas revoltas, com olhos e ouvidos atentos e guardando à filha alguns poucos momentos de carinho endurecido.
É apenas quando está sozinha com Paula (Camila Gaal e, mais tarde, Alejandra Camacho) e María (Blanca Itzel Pérez e Giselle Barrera Sánchez) que a protagonista mirim respira um pouco aliviada e sente a vida verdadeiramente. O trio de atrizes, jovens moradoras das montanhas encontradas pela produção de A Noite do Fogo e preparadas por Fátima Toledo, cria um laço de amor ferrenho e intenso entre suas personagens, que dividem o tempo entre a beleza do olhar da infância, o desejo de ser mulher e o terror de uma existência sob a custódia da guerra ao narcotráfico.
Quando a primeira fogueira se apaga, é Marya Membreño quem assume uma já adolescente Ana. A atriz mantém a rebeldia no olhar de sua antecessora, mas amadurece os questionamentos e a relação com a comunidade machucada que a cerca. Tatiana Huezo, responsável também pelo roteiro, faz questão de que suas sutilezas se dissolvam gradualmente pela narrativa, criando pequenos e amargos buracos de entendimento em suas personagens à medida que os 110 minutos de filme vão chegando ao fim.
No entanto, no momento em que as brasas da segunda Noche de Fuego queimam altas nos céus, as fatalidades que as acompanham sobrepõem qualquer sentimento positivo que a cineasta mexicana-salvadorenha antes nos apresenta. Não há mais espaço para brincadeiras telepáticas, batons de beterraba e mergulhos no lago. Não há risadas na escola nem flertes descompromissados com a felicidade. Só restam cinzas – grudando na pele e encerrando o filme em um pânico silencioso.
A Noite do Fogo é voraz. Tatiana Huezo não hesita em colocar a beleza em cena; muito pelo contrário, é por ela e através dela que a diretora constrói sua obra, por mais trágica que seja. Explorando as várias camadas da violenta solidão da mulher latinoamericana, o escolhido para representar o México na corrida por uma vaga no Oscar 2022 é um coming-of-age que não se intimida em gritar na cara de uma guerra que não pertence ao povo. E, enquanto queimarem, as mulheres roubadas irão gritar.