Bruno Andrade
O sentimento de ambivalência talvez resuma muito bem aquilo que acompanhou Thom Yorke ao longo dos anos. Com o Radiohead, ele alcançou um status mainstream, mas a bem da verdade esse nunca foi o objetivo. É como se duas forças contrárias tivessem o levado ao topo, um possível reflexo de uma cultura que tende a glorificar os inconstantes. Sua indignação ganhou forma poética em canções dolorosas, mas ele nunca esteve sozinho. Ao seu lado, Jonny Greenwood serviu como força motora, dando vida através dos instrumentos aos ruídos melancólicos que Yorke vislumbrava; agora, anos depois, os dois se juntam em um projeto paralelo com Tom Skinner para dar vida ao The Smile, cuja estreia ocorreu em 13 de maio com o lançamento do disco A Light for Attracting Attention.
Muito tempo se passou desde que Yorke e Greenwood migraram seu som de algo mais pós-punk para o experimental, mas o trabalho de ambos manteve algo reconhecível ainda sob o efeito do tempo – mesmo que as guitarras tenham sido deixadas de lado. Com The Smile, há uma retomada de sons do início de carreira, soando como o Radiohead de Hail to the Thief (2003) – inclusive com faixas que haviam sido esquecidas pelo Radiohead e nunca tocadas oficialmente em um álbum, como Skrting On The Surface, que apareceu pela primeira vez em um show do Atoms for Peace de 2009, tocada por Yorke em piano, depois transmitida em um show de 2012 e que agora surge totalmente repaginada no novo projeto.
Como se pôde perceber, as referências ao quinteto inglês perpassam todo o trabalho. Talvez pela simples fisicalidade de dois dos seus principais integrantes, mas sonoramente também. A Light for Attracting Attention poderia facilmente ser um disco do Radiohead, mas não é, e essa é sua graça. Toda a reinvenção que os dois artistas protagonizaram nunca foi muito longe daquilo que fizeram anteriormente, cuja mudança manteve-se gradual. O trabalho de ambos transformou-se em uma mercadoria de nicho gigantesca, que tranquiliza seus consumidores sempre que um novo lançamento é disponibilizado. Entretanto, o que The Smile propõe é, justamente, um contraponto àquilo que os integrantes fizeram com o Radiohead: pode soar parecido, mas não é, pois o Radiohead dos anos 2000 não existe mais, e cedeu espaço ao grupo experimental.
A Light for Attracting Attention começa com a faixa The Same, que vem acompanhada de sintetizadores sombrios e arpejos de violão – uma espécie de dueto entre Yorke e Greenwood. Sem bateria em toda a sua duração, ouvimos no refrão “Somos todos iguais, por favor”. Tom Skinner dá as caras na segunda, The Opposite, a qual se inicia somente com seu instrumento – quase como se fosse para compensar a ausência na anterior. A partir dessa canção, os diálogos existencialistas começam a ganhar forma no CD.
You Will Never Work in Television Again talvez seja a música de protesto mais forte em todo o disco. Ao estilo de 2 + 2 = 5, ela parece ser uma ofensa direta ao degenerado Harvey Weinstein, desde seu título até sua letra, na qual se lê “Deixe as luzes baixas, bunga-bunga ou/Você nunca mais vai trabalhar na televisão”. Também ressoa nos escândalos envolvendo o neoliberal Silvio Berlusconi, ex-primeiro ministro da Itália, pois “Bunga-Bunga” foi o nome de suas festas particulares, onde comprovadamente manteve relações sexuais com menores de idade. Ao mesmo tempo, ela reflete uma ofensa à indústria do entretenimento, como se fosse uma continuação de Paranoid Android.
Um tipo de transcendência através do caos liga as 13 canções do disco, revestidas pelos dedilhados de guitarra, bases de violão e uma bateria limpa em meio aos ecos e sintetizadores. We Don’t Know What Tomorrow Brings – uma das melhores de todo o trabalho – se espelha em Jigsaw Falling Into Place e Bodysnatchers, e, assim como todo o álbum, talvez seja melhor compreendida quando enxergamos suas capacidades negativas, desenvolvidas através de um som que tende a sintetizar ansiedades e trazer revelações míticas.
A produção de Nigel Godrich – um dos arquitetos da estética melancólica no som de Thom Yorke – reforça as semelhanças com o Radiohead (ele trabalha com o grupo desde OK Computer [1997], mas produziu todos os discos solo de Yorke e também o disco de Atoms for Peace, o qual fez parte como integrante). O título do grupo foi retirado de um poema de Ted Hughes – o ex-marido problemático de Sylvia Plath –, e a ideia por trás do projeto surgiu “apenas do desejo de trabalhar na música com Thom em confinamento. Não tínhamos muito tempo, mas só queríamos terminar algumas músicas juntos”, como Jonny Greenwood detalhou em entrevista à NME.
Ao longo dos 53 minutos de duração de A Light for Attracting Attention, algumas canções trazem os ruídos vocais de Thom Yorke parecidos com um gemido invertebrado, cuja característica principal é ser semelhante à voz de alguém que acabou de obter o poder de fala. De alguma forma, espelha conversas oníricas, mas nós não fazemos parte desse sonho, e é como se enxergássemos o indivíduo que fantasia se debater na cama, resmungando e confundindo a realidade com seus próprios desejos obscuros. Porém, não é isso que Yorke pretende fazer através de murmúrios que estão sempre no limite da significação?
Suas letras refletem pistas de algo maior, algo que nunca é de fato explanado, deixando o conteúdo sempre no campo da subjetividade. Os suspiros, sussurros e sintetizadores expansivos – como em A Hairdryer e Speech Bubbles – dão vida a um tipo de doppelgänger que parece habitar o trabalho, um espectro fantasmagórico que vaga pelo disco. Mas talvez o prato principal servido por The Smile seja a concepção de uma Música efêmera, que evoca sentimentos profundos enquanto escutamos.
Se A Light for Attracting Attention trouxe à tona canções abandonadas pelo Radiohead, não deixa de ser suspeito um fim não noticiado do quinteto inglês. A Moon Shaped Pool (2016) já soma seis anos desde seu lançamento, e está preenchido por canções antigas que foram reformuladas ou desenvolvidas extensivamente pela primeira vez. Um ano depois, em 2017, o grupo lançou uma edição comemorativa de OK Computer, e mais recentemente uma outra na qual fundiu Kid A (2000) e Amnesiac (2001). Nesse cenário, o possível fim de uma das maiores bandas de todos os tempos não soa nem um pouco esquisito.
Quando The Smile se apresentou pela primeira vez, há um ano, Thom Yorke disse que o título do power trio não pretendia refletir uma gargalhada, mas sim o “sorriso daquele que mente para você todos os dias”. Essa afirmação repercute novamente no disco do Radiohead de 2003, o qual foi idealizado como um ataque direto ao governo Bush e suas investidas anti-democráticas no Iraque. Ainda assim, apesar de referências políticas, o álbum não se restringe aos ataques políticos. As canções oferecem diferentes tipos de “sorrisos”, resvalando na timidez e no desconforto, mas o significado que ressoa no escuro é um só: The Smile não quer que tudo que amamos seja transformado em uma grande piada.