Nathan Sampaio
Lendas urbanas sempre existiram na sociedade. Elas servem para nos dar explicações, para assustar, entreter e, em alguns casos, tentar abrandar uma realidade dura demais. Tendo isso como base, chegou aos cinemas em setembro de 2021 A Lenda de Candyman, sequência de O Mistério de Candyman, lançado em 1992. O novo longa busca reviver a franquia, já esquecida pelo grande público, e atualizar as discussões propostas na primeira parte.
A produção de 2021 conta a história de Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II), um jovem artista com bloqueio criativo que descobre uma lenda urbana chamada Candyman, na qual se uma pessoa falar o nome dessa entidade cinco vezes na frente do espelho, ela irá aparecer para matar quem ousou lhe chamar. O protagonista, então, invoca esse ser, o que o levará em uma jornada rumo à loucura.
A temática deste filme são os mitos urbanos. O enredo aborda, com excelência, desde o surgimento dessas histórias até o impacto que elas têm em uma comunidade, e quais os significados que elas carregam para quem as conta. Tendo essa mitologia popular como ponto de partida, o roteiro de Jordan Peele, Nia DaCosta e Win Rosenfeld utiliza-a para discutir temas sociais e raciais de extrema relevância, e a sensibilidade dos roteiristas surpreende e enriquece muito a experiência.
Intenso, o roteiro trabalha temas sociais juntamente com o terror, de forma que ambos os assuntos avancem juntos de maneira muito orgânica e coerente. O grande trunfo disso é que podemos assistir uma boa história de horror e que ao final irá propor várias reflexões sobre diversas questões. Jordan Peele é diretor e roteirista dos longas Corra! e Nós, muito elogiados e premiados, e que chamam a atenção por causa da mistura de discussão social com terror, algo muito bem replicado em A Lenda de Candyman.
Além de roteirizar, Nia DaCosta também assume a função de diretora. Sendo apenas o seu segundo trabalho no cargo, ela se destaca demais, pois sua abordagem é muito sensível, sutil e extremamente elegante em muitos momentos. Sem sua direção magnífica, o filme poderia ter se tornado esquecível. Um exemplo da genial direção de DaCosta são os créditos iniciais. Na obra original, essa cena mostrava a cidade de cima para baixo, já no novo projeto, ela é invertida, isto é, de baixo para cima.
Ao fazer isso, a diretora nos conta a diferença de abordagem das duas histórias: no primeiro longa havia uma protagonista branca, então ela via os conflitos sociais do alto de seus privilégios, enquanto nessa nova narrativa, os protagonistas negros, infelizmente, enxerguam e vivenciam os problemas sociais de uma forma completamente diferente. Ou seja, são visões opostas do mesmo assunto, e tudo isso é contado através de um plano simples.
É muito interessante notar como a trama consegue mesclar perfeitamente problemas sociais, como a gentrificação e a violência gerada pelo racismo, com a lenda do Candyman de forma que em nenhum momento parece forçado ou desconexo. Tudo é muito bem encaixado para engrandecer o mito do antagonista e a cultura daqueles que contam sua história.
Candyman só existe porque existe racismo, violência, intolerância e outros diversos problemas sociais. Isso nos leva a refletir quais outras lendas ou histórias temos na vida real que só são contadas por causa desses conflitos da sociedade.
Quando a lenda da entidade é ligada às discussões sociais que o enredo traz, cria-se uma história muito mais assustadora do que um assassino sobrenatural, pois ela conta a realidade e toda a violência presente nela. Isso nos faz pensar que a violência impelida pelo vilão é apenas um reflexo do que acontece todos os dias na vida real.
O Mistério de Candyman também tratava de temas como a exclusão social e o preconceito contra a população negra, porém por ter sido escrito e dirigido por uma pessoa branca, talvez esses assuntos não tenham sido explorados ao máximo. Já neste novo projeto, tem-se a participação de duas pessoas negras no roteiro, além do longa ter sido dirigido por uma mulher negra, e isso muda completamente a visão que se tem acerca dessas problemáticas. Sendo assim, tem-se um enriquecimento da discussão e um aprofundamento maior nessas questões.
Vale ressaltar que embora os dois projetos sejam baseados em um conto escrito pelo autor Clive Barker, dono de outras histórias de Terror como Hellraiser, o roteiro tem uma boa dose de criatividade, pois as discussões sociais têm um maior destaque nos filmes. Além disso, todo o cenário mudou na adaptação, uma vez que o conto se passa em Liverpool, na Inglaterra, e as transposições para o Cinema se passam em Chicago, nos Estados Unidos.
O terror presente em A Lenda de Candyman pode ser dividido em dois núcleos distintos: o primeiro tem o foco no protagonista, já o segundo se foca em personagens invocando a entidade. Há uma grande diferença de qualidade entre essas duas abordagens.
As partes em que o Horror mais se destaca é quando observamos a jornada de Anthony, que aos poucos vai enlouquecendo e passando por um processo de transformação física muito nojento e angustiante. Tudo isso é apresentado gradualmente, o que nos intriga e causa muito desconforto, algo excelente para um filme de terror.
Porém, as cenas de ataque, em sua maioria, não são tão assustadoras, pois não há uma boa construção do suspense ou um temor pela vida dos personagens. Isso acontece porque a maioria desses trechos dá destaque a personagens desinteressantes e os acontecimentos em nada se diferem do esperado pelo espectador. Por isso, é difícil que fiquemos tensos nesses momentos – talvez só pessoas pouco acostumadas com o gênero fiquem realmente com medo.
Tais trechos de terror só não são piores por causa de DaCosta, que consegue criar sequências e planos lindíssimos nos ataques. Por ser invocada através dos espelhos, a entidade só aparece neles, fazendo necessária uma ótima coordenação de atores para que a figura aparecesse somente nos reflexos e ainda assim conseguisse atacar as vítimas no mundo real. O resultado final é impressionante.
Além do elemento do espelho, os momentos de assassinato funcionam porque eles são muito diferentes entre si. Uma das cenas ocorre em uma galeria cheia de espelhos, já em outra nós vemos tudo acontecendo através da janela de apartamento – o que torna essas sequências muito mais interessantes e instigantes.
Se as cenas de morte fossem montadas a partir de personagens mais relevantes e se houvesse um suspense melhor construído, A Lenda de Candyman teria sido muito mais memorável do que já é. Isso não é pedir demais quando se tem ótimas sequências de terror dentro desse mesmo longa.
Outro problema presente na projeção é o seu final, o qual é muito apressado e possui reviravoltas que não fazem sentido, como por exemplo a mudança abrupta de personalidade de William Burke, personagem mentor do protagonista. Além disso, parece que todo o ritmo da trama muda, o sutil e o gradual dão lugar ao frenético e a um embate que não tem lógica. Logo, a sequência final não se encaixa com o resto da história.
A figura do Candyman é bastante reconhecida entre os fãs do Terror. Interpretado originalmente por Tony Todd, que faz uma breve aparição neste filme, o vilão possui um visual marcante, usando seu sobretudo e gancho, além de ter uma origem única e que se difere muito de outros nomes do Horror. É uma pena que ele não ficou tão famoso entre o público geral.
Já no longa-metragem de 2021, o vilão é interpretado muito bem por Michael Hargrove. Apesar dele não falar, a sua expressão sempre carrega um sorriso e um tom de mistério, que causam estranheza no espectador. A sua presença em tela é ameaçadora, isso porque ele sempre aparece flutuando ou invisível no mundo real, e isso causa um tensão e ajuda a engrandecer o antagonista.
Para fazer frente a essa poderosa lenda, era necessário um protagonista marcante e bastante intrigante – felizmente, Anthony McCoy é esse personagem. Yahya Abdul-Mateen II constrói um homem curioso e que está em uma busca ferrenha por inspiração. Com a perda gradual de sua sanidade, o ator mostra sua versatilidade ao se demonstrar atormentado e paranoico com a perseguição do vilão, e até os últimos minutos podemos ver a ótima evolução de seu personagem.
Teyonah Parris interpreta Brianna, esposa de McCoy, e durante a maior parte da projeção sua presença não possui grande impacto, porém próximo ao final sua personagem ganha uma maior relevância na trama, e, mesmo sua interpretação não sendo tão marcante, ela tem seu devido destaque. No meio da história, ela até possui um flashback, mas novamente esse é outro trecho deslocado do resto dos acontecimentos.
O último aspecto que vale a pena ser exaltado são os efeitos visuais. Utilizando-se majoritariamente de efeitos práticos, o longa consegue passar sensações e emoções muito genuínas, é comum se sentir incomodado, angustiado e chocado com as maquiagens mostradas. Todo ferimento, sangramento e corte tem um trabalho muito bem realizado e que mostra a brutalidade do vilão.
Os efeitos digitais, embora pouco usados, auxiliam a criar uma aura mística no Candyman. Isso ocorre, pois esses efeitos ajudam o antagonista a aparecer somente nos espelhos, além de deixar ele flutuando em alguns momentos, corroborando com a lenda contada dentro do enredo.
A Lenda de Candyman é um longa recheado de discussões sociais muito importantes. Partindo das lendas urbanas, a história consegue abordar várias temáticas e propor uma reflexão sobre elas. Além disso, é um longa-metragem que mostra uma viagem angustiante através da loucura de um homem e de todos os horrores que ele encontra. É lamentável que o Terror seja fraco em alguns pontos e seu final, assim como, outras partes sejam um pouco desconexas do resto, porque senão esse filme e a figura do Candyman teriam tudo para se tornarem um clássico absoluto do terror.