O que aconteceu com o brilho da Garota Radiante?

Cena do filme A Garota Radiante. A atriz francesa Rebecca Marder aparece no centro da imagem, e é uma jovem de pele clara, cabelos castanhos e olhos claros; ela usa uma blusa marrom e um casaco azul. Atrás da atriz, existe um caminho de árvores desfocadas.
Irène queria uma coisa: brilhar nos palcos dos teatros (Foto: Pandora Filmes)

Laura Hirata-Vale

Em um tom alegre e cheio de espírito, A Garota Radiante (2021) retrata a história de Irène (Rebecca Marder), uma adolescente apaixonada por Teatro. Dirigido e roteirizado por Sandrine Kiberlain, o longa francês é ambientado no ano de 1942 e mostra como é a vida de uma família judia, expondo, pouco a pouco, as proibições e os impedimentos impostos pelo nazismo. O filme é leve, divertido, mas traz em seus detalhes e entrelinhas o terror da época, que assusta, de uma forma ou de outra, o espectador, alertando-o do que pode estar por vir. 

Diferentemente de outras obras que têm a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo – como em A Lista de Schindler (1993) e O Pianista (2003) – , Une jeune fille qui va bien (no original) mostra uma cidade ‘normal’: não há destruição, bombardeios, exércitos nem bandeiras nazistas em Paris. Há somente bicicletas, ruas de paralelepípedos e edifícios no estilo Haussmann. A narrativa retrata a vida de Irène de uma forma enérgica, em que a jovem aproveita todos os instantes, enquanto descobre a paixão e tenta entrar no Conservatório da cidade. Como se fosse uma grande neblina, as vivências da garota tentam encobrir as anormalidades que acontecem durante o filme.

Cena do filme A Garota Radiante. Na imagem, sete jovens aparecem, na frente de uma porta vermelha: quatro estão de pé, e três estão sentadas.
O cotidiano da jovem foi abalado de forma trágica (Foto: Pandora Filmes)

A Garota Radiante possui diversos contrastes. Um deles é o otimismo e despreocupação da protagonista em comparação à preocupação de André (André Marcon), seu pai. Enquanto ela vive sem se importar com as consequências de suas ações, ele se atenta a cada detalhe; além disso, a avó, Marceline (Françoise Widhoff), se aflige e chega a negar a situação em que se encontram, a fim de tentar proteger a família. É uma dualidade estranha: as proibições do nazismo – como o confiscamento de rádios, telefones e bicicletas, além dos documentos carimbados com ‘judeu’ em letras vermelhas e garrafais, e o uso de uma Estrela de Davi amarela costurada no peito – são tratadas por Irène sem muita importância, como se fossem coisas quaisquer, mesmo que elas tenham impacto em sua vida.

Durante seus 88 minutos, o longa afirma, através de pequenos momentos, que a normalidade cotidiana dos judeus parisienses foi abalada. O desenrolar do filme se dá pela confusão de alguns personagens: será que o sumiço de colegas, vizinhos e amigos foram causados por viagens de férias ou por sequestros? Uma fração do elenco começa a temer o que está acontecendo, enquanto a outra acha que tudo está como o habitual. É uma espécie de cegueira, que – infelizmente – acontece até hoje. A impossibilidade e incapacidade de enxergar o que está ocorrendo, por parte da protagonista, preocupa sua família, por não conseguir ver os perigos que corre durante o dia a dia.

Foto em preto e branco do set de produção do filme A Garota Radiante. Duas mulheres aparecem sentadas lado a lado na imagem. A mulher da esquerda é a atriz Rebecca Marder; a da direita é Sandrine Kiberlain, a roteirista e diretora do filme.
Inspirada por parte da história de seus avós, Kiberlain esperou o momento certo para dar vida ao filme (Foto: Pandora Filmes)

No début de Sandrine Kiberlain no papel de diretora e roteirista, a atriz realiza um trabalho satisfatório: Une jeune fille qui va bien estreou na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2021, e recebeu uma indicação ao prêmio Câmera de Ouro. Além disso, a atuação de Rebecca Marder foi lembrada na categoria de Atriz Mais Promissora nos prêmios Lumière e César. Este último é considerado um dos reconhecimentos mais importantes do Cinema francês e, no passado, indicou Léa Seydoux, por A Bela Junie (2008), e laureou a diretora do A Garota Radiante, pelo longa En avoir (ou pas) [1995]

A fotografia – feita por Guillaume Schiffman, do premiado O Artista (2011) – é radiante e saturada, cheia de cores vivas, sendo algo inusitado para um filme que trata assuntos tão sérios e delicados como a Segunda Guerra Mundial, diferentemente do que ocorre em A Vida é Bela (1997) e A Lista de Schindler (1993), que possuem tonalidades escuras e sombrias. A trilha sonora ficou nas mãos de Patrick Desremaux e Marc Marder (o pai da atriz principal), e conta com canções mais antigas, como a francesa Que Reste-t-il de nos Amours ?, de Charles Trenet, utilizada em Beijos Proibidos (1968), produção clássica do Cinema francês. Já o guarda-roupas do longa, montado por Emmanuelle Youchnovski, possui ao mesmo tempo um ar nostálgico e moderno, mostrando como as situações retratadas ainda são atuais.

Cena do filme A Garota Radiante. Na imagem, o ator Anthony Bajon aparece tocando uma flauta transversal; ele é um homem branco, com cabelos castanhos e de olhos castanhos-esverdeados, e usa uma camisa bege clara e um colete de tricô marrom. À frente dele, uma moça de pele branca aparece – desfocada – tocando violino.
O irmão de Irène, Igor (Anthony Bajon), também está envolvido com arte: ele é flautista [Foto: Pandora Filmes]
Mesmo com toques sobre os medos e preocupações da época, A Garota Radiante é um filme divertido. Vemos como Irène é jovial, elétrica e espirituosa, com seus dilemas e descobertas normais da fase entre adolescência e idade adulta. Cheia de vida e expressões marcantes, conseguimos observar que a menina foi feita para estar em cima de palcos, sob os holofotes e dentro do teatro – ela é capaz de virar uma estrela cintilante da Quinta Arte. Porém, de um instante para outro, algo acontece com o brilho de Irène: ele se apaga amargamente, deixando um gosto ruim no céu da boca, e fazendo os corações ficarem apertados, cheios de angústia. O longa nos faz ter esperança até seu último minuto, quando percebemos que – em uma época tão inóspita como os anos 40 – a normalidade não é realmente normal, e que tudo pode mudar em um segundo, olhar ou sussurro.

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