Aviso: o texto contém spoilers.
Davi Marcelgo
Depois de uma odisseia que durou 23 anos, o criativo A Fuga das Galinhas (2000) ganhou uma sequência. O longo percurso para a continuação sair do papel foi resultado de muitos fatores: o fim da parceria entre Aardman Animations e Dreamworks em 2006, a pandemia da covid-19, a troca de elenco devido às polêmicas envolvendo racismo por parte de Mel Gibson – dublador do personagem Rocky em 2000 –, além do custo e da necessidade de uma equipe maior para a produção. Sem um grande estúdio por trás, a história das aves ficou sem um novo voo por mais de duas décadas. Em 2020, a Netflix anunciou a continuação, A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets. Mas será que ela mantém a qualidade do primeiro filme?
A resposta é: nem tanto. A animação em stop motion continua linda, cheia de detalhes e com todos os atributos que sintetizam o cuidado dos profissionais e animadores. No comando do diretor Sam Fell, a diferença mais gritante são as cores, mais vivas e festivas, que conseguem captar muito bem o espírito de liberdade e da utopia celebrada pelas galinhas remanescentes que escaparam da fazenda da Sra. Tweedy (Miranda Richardson). Tal estética se opõe à Fotografia do filme antecessor, rodado por Nick Park e Peter Lord, que é escura, com aspecto sujo e ‘melequento’, sem nenhum tipo de entusiasmo. Afinal, as descendentes dos dinossauros sobreviveram de um espaço sanguinário.
Na trama de Ameaça dos Nuggets, Ginger (Thandiwe Newton) e Rocky (Zachary Levi) desfrutam da independência e da família, porém, a filha do casal, Molly (Bella Ramsey), começa a idealizar um mundo melhor para além da ilha em que vivem. No entanto, eles mal sabem que uma antiga inimiga ainda comanda a região. Os problemas do longa começam quando Molly é levada para a fábrica de nuggets da Sra. Tweedy. A textura bucólica se torna metálica, de acordo com o espaço em cena. Contudo, para além do campo, as cores ainda continuam muito salteadas e todo pânico por ter a morte ao lado se esvai junto com a fumaça de ‘franguinho’ na panela. As cores, do diretor de Fotografia Charles Copping, não comunicam de forma coerente.
A fábrica, embora seja maior e tenha um modelo de produção em larga escala, não consegue transmitir a mesma ameaça da pequena granja da animação de 2000. Além das cores, há outros dois motivos, sendo eles o humor e a decupagem. As ‘piadinhas’ continuam visuais, muitas vezes, partindo do corpo dos bonecos de ‘massinha’, porém, grande parte dos personagens são bem ‘bobinhos’ e infantilizados, lembrando Shaun, o carneiro, também da Aardman.
A animação ser infantil não é um pecado, mas a técnica não é exclusiva para crianças e, olhando em retrocesso, a direção da dupla de criadores e o texto possuíam um humor mais inteligente e ácido. Exemplo desse tom é a cena cuja comicidade é um detalhe; Babs (Jane Horrocks) costura uma corda de forca com tricô. Para mais, há a descrença da Sra. Tweeny na capacidade das galinhas planejarem um complô, registrada na fala: “São as criaturas mais burras do planeta. Elas não pensam, não tramam e não estão organizadas”. O quadro seguinte imediatamente mostra Ginger pedindo por ordem. Tal contradição e uma galinha pensando em morte são risíveis.
O segundo motivo é a decupagem de cena; a forma como Park e Lord evocam uma sensação de perigo e desilusão usando sombras e a percepção dos sentidos humanos não presentes na sequência. Como exemplo, a cena em que, após a Sra. Tweedy escolher qual galinha vai matar, ela coloca luvas na cor vermelha. O som é um estalo forte do elástico no punho somado ao corvejo de corvos. Então, a porta se abre e, a partir do campo de visão na altura de uma galinha, vemos um machado enfincado num tronco. Ginger está acompanhando tudo de longe, incapaz de fazer algo e com a expressão de medo. A vilã empunha a arma e só enxergamos as sombras. A morte é confirmada pelo som do machado. A cena finaliza com pássaros brandos sobrevoando a granja. Depois, a câmera passeia pela mesa de jantar: ali, há restos de um frango assado.
Machado, luva vermelha, pássaros voando, todos os objetos em cena são abstraídos dos seus sentidos literais e ressignificados através das simbologias de liberdade, prisão e morte de A Fuga das Galinhas. Nick Park e Peter Lord querem que você tenha asas e um bico. A icônica cena em que Ginger e Rocky invadem a máquina de tortas lembra o inferno. Ela é toda ‘melequenta’, cheia de fogo e com um ar de impossibilidade de escapar, além de ter sido filmada com muita frenesia, movimento e caos. Já a direção de Fell não consegue por um minuto sequer nos colocar em uma grelha de churrasco. Tudo é muito ‘limpinho’: sem estímulos e grandes inspirações.
O filme de 2023 pelo menos entende a alegoria marxista e a de campos de concentração pretendida pela história das penosas, continuando essas ideias. Molly foge da vila porque acha que a grama do outro lado é mais verde. Ginger a proíbe de sair, mas esconde todo o passado cruel que viveu. A necessidade de avisar as novas gerações sobre opressores e formas de extermínio é uma temática e tanto. Porém, o enredo, roteirizado por Karey Kirkpatrick, John O’Farrell e Rachel Tunnard, verbaliza outra resposta: a protagonista perdoa a filha por achar que ela tem o mesmo espírito de liberdade. Dessa forma, resumiram uma narrativa política em uma condição determinista fajuta.
Até a escolha do retorno da antagonista teria mais força sem essa linha de diálogo. Em A Fuga das Galinhas, a origem do nome das tortas é exposta no seguinte diálogo: “a torta de galinhas feita em casa pela senhora Tweedy” e justificado pelo argumento “toque feminino, o público se sente mais confortável”. Criando uma alegoria com a manipulação que empresas e sistemas fazem com as massas. Disfarçam todo sangue derramado com propagandas felizes e acolhedoras.
Na sequência, que apresenta a mesma inimiga, mas, dessa vez, em outra roupagem, com maquiagem, roupas chiques e um novo corte de cabelo, é infeliz a falta de tato ou até limitações coagidas pela produção (dificilmente saberemos) em não criar paralelos sobre ressurgimento de ideais nazi-fascistas, grupos extremistas que não utilizam nomes e discursos racistas ou homofóbicos explícitos para não soarem malignos – ainda que continuem sendo –, ou organizações disfarçadas de salvadoras da família, com políticos trajados em túnicas cristãs. As ideias estão todas ali e, infelizmente, o filme não faz um exercício maior sobre elas, criando cenas de arrepiar e sentir nojo. Não é exagero pedir isso do filme ou de uma animação, porque seu antecessor sabia muito bem o que estava fazendo.
Outro ponto interessante das escolhas narrativas do longa original é o galo idoso Fowler (a voz de Benjamin Whitrow foi substituída pela de David Bradley), que é responsável por pilotar o avião de fuga, ajudando a ‘galinhada’ a escapar do sítio. O roteiro defende que a revolução só pode acontecer com todo mundo. Independente da faixa etária, todos são importantes. Entretanto, em A Ameaça dos Nuggets, o personagem é reduzido à inutilidade, ou seja, tem zero impacto na trama e é visto pelos outros personagens como um peso morto. A coincidência é que Julia Sawalha, dubladora original de Ginger, declarou em suas redes sociais que não voltaria para a sequência, pois sua voz estaria “velha demais”. Ela afirmou também que não foi chamada para testes de elenco.
O primeiro filme é uma obra-prima das animações, tem uma unidade de ideias e linguagem bem alinhadas. Tudo está em tela por um motivo. A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets não consegue alcançar a magnitude do seu antecessor, embora continue charmoso e divertido. Personagens são descartados, algumas escolhas são questionáveis e a animação fica mais quadrada, nos moldes da Netflix. Sam Fell acaba fazendo apenas omelete sem tempero, mesmo com tantos ovos bons, que poderiam fazer bolos, tortas e, quem sabe, uma revolução.