Menos inteligente, A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets pisoteia em ovos

Aviso: o texto contém spoilers.

Cena do filme A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos NuggetsNa imagem, os personagens do filme estão reunidos comemorando o nascimento do pintinho Molly. Ginger e Rocky seguram Molly no colo. Ginger é uma galinha ruiva, tem olhos verdes, usa boina verde e lenço branco amarrado no pescoço. Rocky é um galo de cores laranja e vermelho escuro, ele tem olhos castanhos escuros e usa um lenço azul com bolinhas brancas amarrado no pescoço. Molly é um pintinho amarelo, com olhos azuis e crista roxa. Ela está sentada em uma casca de ovo. Ao redor deles, tem mais 3 galinhas e um galo. O galo é Fowler, ele é mais velho, tem sobrancelhas grossas e coloração azul e branca. Ele segura um bastão dourado e tem um lenço branco amarrado no pescoço. Na sua direita, está Babs, ela está uma galinha de cor bege, com crista azul penteada para baixo como uma franja. Ela está tricotando crochê vermelho e usa um colar de pérolas rosa. Na esquerda de Rocky, estão Bunty e Mac. Mac é uma galinha branca, usa óculos e lenço xadrez na cor amarela amarrado no pescoço. Bunty é uma galinha na cor vinho e usa um colar de bolinhas azuis. Ao fundo, há uma vila, com árvores, gramas e casas de palha.
O elenco principal tem novos dubladores: Zachary Levi e Thandiwe Newton dão vida a Rocky e Ginger (Foto: Netflix)

Davi Marcelgo  

Depois de uma odisseia que durou 23 anos, o criativo A Fuga das Galinhas (2000) ganhou uma sequência. O longo percurso para a continuação sair do papel foi resultado de muitos fatores: o fim da parceria entre Aardman Animations e Dreamworks em 2006, a pandemia da covid-19, a troca de elenco devido às polêmicas envolvendo racismo por parte de Mel Gibson – dublador do personagem Rocky em 2000 –, além do custo e da necessidade de uma equipe maior para a produção. Sem um grande estúdio por trás, a história das aves ficou sem um novo voo por mais de duas décadas. Em 2020, a Netflix anunciou a continuação, A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets. Mas será que ela mantém a qualidade do primeiro filme? 

A resposta é: nem tanto. A animação em stop motion continua linda, cheia de detalhes e com todos os atributos que sintetizam o cuidado dos profissionais e animadores. No comando do diretor Sam Fell, a diferença mais gritante são as cores, mais vivas e festivas, que conseguem captar muito bem o espírito de liberdade e da utopia celebrada pelas galinhas remanescentes que escaparam da fazenda da Sra. Tweedy (Miranda Richardson). Tal estética se opõe à Fotografia do filme antecessor, rodado por Nick Park e Peter Lord, que é escura, com aspecto sujo e ‘melequento’, sem nenhum tipo de entusiasmo. Afinal, as descendentes dos dinossauros sobreviveram de um espaço sanguinário.

Na trama de Ameaça dos Nuggets, Ginger (Thandiwe Newton) e Rocky (Zachary Levi) desfrutam da independência e da família, porém, a filha do casal, Molly (Bella Ramsey), começa a idealizar um mundo melhor para além da ilha em que vivem. No entanto, eles mal sabem que uma antiga inimiga ainda comanda a região. Os problemas do longa começam quando Molly é levada para a fábrica de nuggets da Sra. Tweedy. A textura bucólica se torna metálica, de acordo com o espaço em cena. Contudo, para além do campo, as cores ainda continuam muito salteadas e todo pânico por ter a morte ao lado se esvai junto com a fumaça de ‘franguinho’ na panela. As cores, do diretor de Fotografia Charles Copping, não comunicam de forma coerente. 

Cena do filme A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos NuggetsNa cena, Molly está andando com expressão de zangada, enquanto Rocky e Ginger estão atrás com expressão de chateados. Ginger é uma galinha ruiva, usa boina verde e lenço branco amarrado no pescoço. Rocky é um galo de cores laranja e vermelho escuro, ele tem olhos castanhos escuros e usa um lenço azul com bolinhas brancas amarrado no pescoço. Molly é uma galinha ainda criança, de cor amarela, boina verde, lenço roxo com um detalhe em vermelho, olhos azuis e crista vermelha e roxa. Ao fundo, há uma vila, com árvores, flores, gramas e casas de palha.
A vila das galinhas demorou em torno de dois anos para ser construída (Foto: Netflix)

A fábrica, embora seja maior e tenha um modelo de produção em larga escala, não consegue transmitir a mesma ameaça da pequena granja da animação de 2000. Além das cores, há outros dois motivos, sendo eles o humor e a decupagem. As ‘piadinhas’ continuam visuais, muitas vezes, partindo do corpo dos bonecos de ‘massinha’, porém, grande parte dos personagens são bem ‘bobinhos’ e infantilizados, lembrando Shaun, o carneiro, também da Aardman.

A animação ser infantil não é um pecado, mas a técnica não é exclusiva para crianças e, olhando em retrocesso, a direção da dupla de criadores e o texto possuíam um humor mais inteligente e ácido. Exemplo desse tom é a cena cuja comicidade é um detalhe; Babs (Jane Horrocks) costura uma corda de forca com tricô. Para mais, há a descrença da Sra. Tweeny na capacidade das galinhas planejarem um complô, registrada na fala: “São as criaturas mais burras do planeta. Elas não pensam, não tramam e não estão organizadas”. O quadro seguinte imediatamente mostra Ginger pedindo por ordem. Tal contradição e uma galinha pensando em morte são risíveis. 

Cena do filme A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos NuggetsNa imagem, Rocky está com a expressão de convencido, parado numa hélice de sistema de ventilação. Ele é um galo de cores laranja e vermelho escuro, ele tem olhos castanhos escuros e usa um lenço azul com bolinhas brancas amarrado no pescoço. Do lado direito, estão 2 ratos. Um deles é mais magro, está sorrindo e olhando para Rocky enquanto encosta dois fios vermelhos, produzindo faísca. Ele tem cor cinza, focinho comprido, veste uma roupa verde e usa boina. O outro, está olhando para os fios com expressão de assustado. Ele também tem cor cinza e focinho comprido e usa um terno amarelo com a gravata feita de zíper. A ventilação tem 3 hélices e é prateada.
O filme foi direto para o streaming e não teve exibições nos cinemas (Foto: Netflix)

O segundo motivo é a decupagem de cena; a forma como Park e Lord evocam uma sensação de perigo e desilusão usando sombras e a percepção dos sentidos humanos não presentes na sequência. Como exemplo, a cena em que, após a Sra. Tweedy escolher qual galinha vai matar, ela coloca luvas na cor vermelha. O som é um estalo forte do elástico no punho somado ao corvejo de corvos. Então, a porta se abre e, a partir do campo de visão na altura de uma galinha, vemos um machado enfincado num tronco. Ginger está acompanhando tudo de longe, incapaz de fazer algo e com a expressão de medo. A vilã empunha a arma e só enxergamos as sombras. A morte é confirmada pelo som do machado. A cena finaliza com pássaros brandos sobrevoando a granja. Depois, a câmera passeia pela mesa de jantar: ali, há restos de um frango assado. 

Machado, luva vermelha, pássaros voando, todos os objetos em cena são abstraídos dos seus sentidos literais e ressignificados através das simbologias de liberdade, prisão e morte de A Fuga das Galinhas. Nick Park e Peter Lord querem que você tenha asas e um bico. A icônica cena em que Ginger e Rocky invadem a máquina de tortas lembra o inferno. Ela é toda ‘melequenta’, cheia de fogo e com um ar de impossibilidade de escapar, além de ter sido filmada com muita frenesia, movimento e caos. Já a direção de Fell não consegue por um minuto sequer nos colocar em uma grelha de churrasco. Tudo é muito ‘limpinho’: sem estímulos e grandes inspirações.

Cena do filme A Fuga das GalinhasNa imagem, Ginger e outras galinhas encaram a câmera com tristeza enquanto chove. Ginger é uma galinha ruiva, tem olhos verdes, usa boina verde e lenço branco amarrado no pescoço. As outras galinhas estão ao fundo, desfocadas. O cenário é de uma granja.
Custando 45 milhões de dólares, o primeiro stop motion da Dreamworks lucrou 220 milhões de dólares e causou mudanças no Oscar (Foto: Aardman Animations)

O filme de 2023 pelo menos entende a alegoria marxista e a de campos de concentração pretendida pela história das penosas, continuando essas ideias. Molly foge da vila porque acha que a grama do outro lado é mais verde. Ginger a proíbe de sair, mas esconde todo o passado cruel que viveu. A necessidade de avisar as novas gerações sobre opressores e formas de extermínio é uma temática e tanto. Porém, o enredo, roteirizado por Karey Kirkpatrick, John O’Farrell e Rachel Tunnard, verbaliza outra resposta: a protagonista perdoa a filha por achar que ela tem o mesmo espírito de liberdade. Dessa forma, resumiram uma narrativa política em uma condição determinista fajuta. 

Até a escolha do retorno da antagonista teria mais força sem essa linha de diálogo. Em A Fuga das Galinhas, a origem do nome das tortas é exposta no seguinte diálogo: “a torta de galinhas feita em casa pela senhora Tweedy” e justificado pelo argumento  “toque feminino, o público se sente mais confortável”. Criando uma alegoria com a manipulação que empresas e sistemas fazem com as massas. Disfarçam todo sangue derramado com propagandas felizes e acolhedoras.

Na sequência, que apresenta a mesma inimiga, mas, dessa vez, em outra roupagem, com maquiagem, roupas chiques e um novo corte de cabelo, é infeliz a falta de tato ou até limitações coagidas pela produção (dificilmente saberemos) em não criar paralelos sobre ressurgimento de ideais nazi-fascistas, grupos extremistas que não utilizam nomes e discursos racistas ou homofóbicos explícitos para não soarem malignos – ainda que continuem sendo –, ou organizações disfarçadas de salvadoras da família, com políticos trajados em túnicas cristãs. As ideias estão todas ali e, infelizmente, o filme não faz um exercício maior sobre elas, criando cenas de arrepiar e sentir nojo. Não é exagero pedir isso do filme ou de uma animação, porque seu antecessor sabia muito bem o que estava fazendo. 

Cena do filme A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos NuggetsNa imagem, estão as personagens Senhora Tweedy e Ginger. Tweedy está em uma escada de vidro e Ginger está escondida embaixo com expressão assustada. Ela é uma galinha ruiva, usa boina verde e lenço branco amarrado no pescoço. A senhora Tweedy é uma mulher adulta, branca. Seus cabelos são pretos e estão presos para cima com uma tiara. Ela veste uma roupa roxa, luvas, calça escura e luvas vermelhas.
A cena da escada de vidro foi uma das mais difíceis de fazer (Foto: Netflix)

Outro ponto interessante das escolhas narrativas do longa original é o galo idoso Fowler (a voz de Benjamin Whitrow foi substituída pela de David Bradley), que é responsável por pilotar o avião de fuga, ajudando a ‘galinhada’ a escapar do sítio. O roteiro defende que a revolução só pode acontecer com todo mundo. Independente da faixa etária, todos são importantes. Entretanto, em A Ameaça dos Nuggets, o personagem é reduzido à inutilidade, ou seja, tem zero impacto na trama e é visto pelos outros personagens como um peso morto. A coincidência é que Julia Sawalha, dubladora original de Ginger, declarou em suas redes sociais que não voltaria para a sequência, pois sua voz estaria “velha demais”. Ela afirmou também que não foi chamada para testes de elenco. 

O primeiro filme é uma obra-prima das animações, tem uma unidade de ideias e linguagem bem alinhadas. Tudo está em tela por um motivo. A Fuga das Galinhas: A Ameaça dos Nuggets não consegue alcançar a magnitude do seu antecessor, embora continue charmoso e divertido. Personagens são descartados, algumas escolhas são questionáveis e a animação fica mais quadrada, nos moldes da Netflix. Sam Fell acaba fazendo apenas omelete sem tempero, mesmo com tantos ovos bons, que poderiam fazer bolos, tortas e, quem sabe, uma revolução. 

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