Vitória Silva
Em 2017, o mundo hollywoodiano virou do avesso. Denúncias de assédio sexual por parte de funcionários e funcionárias do meio artístico começaram a vir à tona para o grande público. A avalanche se desencadeou com as acusações sobre o magnata Harvey Weinstein, dono da grande produtora Miramax, e hoje condenado a 23 anos de prisão. Com isso, outros escândalos emergiram para a superfície na crescente onda do movimento #MeToo, que acumula queixas de superiores até fora do meio cinematográfico.
Não ia demorar muito para que esses protestos tomassem forma nas telonas. O Escândalo, lançado em 2019, foi um dos primeiros a cumprir a tarefa, ao tratar sobre casos de assédio causados por Roger Ailes, diretor da Fox News. Apesar de parecer promissor, o resultado acabou por ser uma prova nítida de que boas intenções não fazem um bom filme, muito menos justiça, se as pessoas erradas estiverem por trás das câmeras. Nesse caso, A Assistente merece muito mais levar os créditos do pioneirismo.
Escrita e dirigida por Kitty Green, a produção se centra na rotina de Jane, uma aspirante à produtora de cinema, que trabalha como assistente em uma grande empresa do ramo. Mas essa narrativa não surge às claras logo de início. Acompanhamos cada passo de seu longo dia de trabalho, em que ela é a primeira a chegar e a última a sair, com a curiosidade em entender para onde esse caminho irá nos levar. As ligações, os agendamentos e os roteiros que ela imprime são algumas peças do quebra-cabeça que vão se juntando ao longo dos agonizantes minutos.
O conflito principal da trama também não é entregue de bandeja, e, para quem esteve por fora dos últimos acontecimentos do mundo midiático, talvez nada tenha feito sentido até agora. Entre os afazeres de nossa protagonista, há diversos encobrimentos sobre alguns atos do seu chefe, que, bem nas entrelinhas, é possível entender bem sobre o que se trata. Um chefe que não possui rosto, sendo apenas um fantasma sobre a narrativa.
Essa impessoalidade sobre o filme é o acerto principal de Kitty Green. Não identificamos quem é o poderoso magnata que se esconde no escritório, e nem é preciso. Os homens que cometem atos indecentes com seus empregados não possuem nome nem endereço na vida real. Basta muito poder nas mãos e uma mentalidade advinda de anos de construção de uma cultura patriarcal repulsiva. Deixar esse espaço em aberto mostra o quanto é uma situação aplicável para qualquer lugar e qualquer pessoa, seja Weinstein, Ailes ou Kevin Spacey.
O papel de Jane é simbólico em diversos aspectos. Sua inocência é representada desde sua blusa rosa e sua caneca colorida, em meio a um ambiente cinza e perverso. A angústia é clara no olhar de Julia Garner ao observar cada detalhe da rotina que a cerca, as situações que acoberta sem ter conhecimento, os comentários machistas entre funcionários e as atitudes daqueles que normalizam a situação criminosa que os envolve. Ela acaba por ser uma vítima indireta das pequenas agressões que a rodeiam naquele ambiente.
A condução da narrativa é um exemplo perfeito sobre como denunciar assuntos delicados com objetividade e sem ferir suas vítimas. O filme não foca em nenhum momento em mostrar detalhes nefandos dos abusos sexuais que acontecem por trás da porta, deixando a vista mais do que o suficiente para que se possa entender e sentir a situação. O protagonismo da assistente é uma representação daqueles que se veem impunes em meio a situações de assédio, e dos que sofrem ao observar a crueldade de atos sem ter certeza completa sobre eles.
A ficha demora para cair de vez, mas ela cai. O clímax do filme se dá quando Jane resolve tentar fazer uma queixa em relação aos acontecimentos que tem observado, e vemos aí a cena mais dilacerante da produção. A sutileza com que ela é acolhida para falar sobre os problemas, e a reação agressiva que recebe na mesma intensidade, que completa o bingo dos questionamentos às denúncias de abuso sexual: “você está com inveja”, “vai destruir sua carreira” e “não se preocupe, você nem faz o tipo dele”.
A Assistente é um filme cruel até o último minuto. Quebrando os paradigmas de final feliz que estamos tão acostumados, não há nenhum arco de justiça ou empoderamento. Kitty Green nos agride com a realidade na sua forma mais pura e fria: a falta de apoio e a descrença sobre as vítimas de assédio. E traz uma resposta para um questionamento de muito tempo, sobre como Hollywood conseguiu esconder escândalos sexuais por tantos anos. Não foi muito difícil.
O final da trama deixa o destino de Jane em aberto, sobre qual seria sua decisão diante de uma escolha de Sofia. A narrativa se fecha restando uma ponta de ansiedade e curiosidade, e também a certeza de que qualquer um dos caminhos escolhidos seria igualmente destruidor. O futuro da assistente não precisa ser mostrado, pois já o vemos se repetir inúmeras vezes todos os dias.
A Assistente cutuca as feridas que Hollywood insiste em tentar cicatrizar. A falsa vitória dos protestos em prol das vítimas, enquanto mal consegue reconhecer o esforço de mulheres no meio profissional e manter uma indústria saudável e segura. De nada adiantam as denúncias e manifestações bem sucedidas se abusadores continuarem sendo aplaudidos, ou até mesmo premiados, como se as consequências de seus atos fosse um mero deslize.