Guilherme Veiga
Sem tempo para morrer, e com menos tempo ainda para estrear. Inicialmente planejado para vir ao mundo no longínquo último ano normal da terra, 2019, pelas mãos de Danny Boyle (Trainspotting, Quem Quer Ser um Milionário?), o último capítulo da era Craig sofreu de inúmeros adiamentos. Primeiro, Boyle abandonou o projeto por diferenças criativas e Cary Joji Fukunaga (Beasts of No Nation, True Detective) assumiu o longa, fazendo com que ele fosse jogado para 2020, e azaradamente fosse o primeiro a puxar a fila de adiamentos por conta da pandemia de covid-19. Isso fez com que o filme só conhecesse as salas de cinema em setembro de 2021, 6 anos depois do capítulo anterior, maior intervalo de tempo entre filmes do agente desde 007 contra GoldenEye.
Naturalmente em Hollywood, muitos adiamentos são um sinal de mal presságio, um exemplo recente é o terror (literalmente) que a Fox — em seu último projeto pré-venda — fez com Os Novos Mutantes. Sem Tempo Para Morrer felizmente não sofre dessa maldição, e isso se dá pela própria natureza da franquia Bond ao longo das décadas. Sinônimo de realeza, os filmes são recheados de pragmatismo e distinção, sem pressas ou sem correr riscos, assim como a corte britânica. E isso, com perdão do trocadilho, garantiu um comportamento espectral entre as obras, e nos longas de Daniel Craig isso fica bem mais nítido, onde os altos e baixos são visíveis e intercalados. E seguindo a ordem natural dessa curva, após o excelente 007 – Operação Skyfall e o nem tão excelente 007 – Contra Spectre, nada mais justo que se despedir de Daniel Craig em alta.
Se provando a Meryl Streep da categoria — além das já esperadas indicações ao BAFTA — Sem Tempo Para Morrer conseguiu sua cadeira cativa no Oscar mais uma vez com a indicação em Melhor Canção Original por No Time to Die, performada por outra queridinha das premiações, Billie Eilish (e composta, como sempre, em parceria com o irmão Finneas O’Connell). A faixa talvez seja uma das melhores dessa safra, perdendo somente para Skyfall na voz de Adele, e, se seguir o mesmo caminho dos títulos anteriores, certamente levará o careca dourado para casa. O longa também foi indicado na categoria Melhor Som e na de Melhores Efeitos Visuais, na qual o páreo é um pouco mais duro, e, se a tão pedida categoria de dublês saísse do papel, certamente seria o franco favorito.
Os 163 minutos de duração podem assustar no começo, porém, o longa entrega uma típica aventura episódica de James Bond e as mais de 2 horas e quarenta passam despercebidas em um filme que te prende do começo ao fim com sequências impecáveis de ação. A obra é uma ode ao legado tanto de Bond quanto de Craig, lotado de piadas internas para fãs e referências, como por exemplo, Bond se aposentar e ir para a Jamaica, local onde Ian Fleming escreveu os primeiros contos do agente. Porém, filmes de longa duração naturalmente evocam a reclamação de que se poderia tirar “uns 30 minutos” sem comprometer a obra, e nesse caso, tal protesto é válido. Fica nítido as barrigadas que o roteiro dá para preencher a obra e adiar a despedida.
Aliás, a despedida e a quase certa renovação da franquia se mostram necessárias aqui, pois é onde o desgaste da marca em seu processo de produção começa a ficar mais evidente. Os roteiristas, à frente das histórias desde 1999, mostram que não têm o mesmo tato para conduzir a narrativa, razão pela qual Phoebe Waller-Bridge (Fleabag) foi escalada, pelo próprio Craig, para revisar o texto. Sem conseguir arrumar a bagunça que eles mesmos fizeram em Spectre, a escrita se perde ao explicar a organização e suas consequências nesse filme, uma prova é o descaso que o texto tem com Blofeld (Christopher Waltz), praticamente jogando o personagem no lixo.
Outro exemplo é o vilão principal Safin, vendido como um dos mais inteligentes do universo Bond, e até tem uma construção interessante com a cena inicial de tirar o fôlego, mas no fim, é só um lunático que parece ser fã do Dr. No, ficando muito abaixo do excelente Silva de Javier Bardem em Skyfall e até mesmo de Blofeld, que também tinha sido maltratado pelo roteiro. A única coisa boa que esse vilão traz é a prova de que a estatueta para Rami Malek (Mr. Robot, Bohemian Rhapsody) em 2019 foi um dos maiores devaneios recentes da Academia. Aqui, entre suas forçadas de sotaque, ele constrói um antagonista extremamente caricato que não combina com esse Bond. Mais uma que deixa a desejar é a Madeleine Swann de Léa Seydoux, que desenvolve uma performance muito sem sal. Para efeito de comparação, em A Crônica Francesa, lançado no mesmo ano, ela se entrega muito mais, mesmo tendo menos espaço e fala, porém apoiada pela força do texto e da direção. Curiosamente, os dois piores personagens são os que mais o roteiro explora.
Porém, a escrita tem seus méritos e eles precisam ser lembrados. Alguns personagens são bem inseridos e funcionam bem na história, começando pelo próprio Bond. Aqui, o texto enfoca o lado humano do agente e o constrói através de bastante sentimentalismo, fazendo com que nesse filme ele esteja menos Bond e mais Craig, decepcionando alguns e conquistando outros. A nova 007, Lashana Lynch (que venceu a categoria popular de Estrela em Ascenção no BAFTA), mostrou lidar bem com o papel e desenvolveu uma ótima química com Bond, preenchendo em alguns momentos — e de forma diferente da convencional — a lacuna de uma bond girl não estabelecida na obra. Se não fosse pela pressão injusta que sofreu, Lashana seria uma 007 muito promissora. Por último e não menos importante, é válido o destaque para Ana de Armas, que aqui repete o trabalho ao lado de Daniel Craig depois de Entre Facas e Segredos. Mesmo com pouco tempo de tela comparado com a duração (um verdadeiro pecado) sua personagem Paloma rouba a cena.
Sem Tempo Para Morrer mostra que essa nova fase da franquia se provou e amadureceu junto com Craig. Foram muito felizes ao reconhecerem e se inserirem no cenário de filmes de ação, e nesse, mostram tudo que aprenderam com si próprio e com outras novas vertentes desse gênero voltado para espionagem como a franquia Bourne, John Wick, sua compatriota Atômica (do qual inclusive tem um plano-sequência na escada que foi claramente inspirado) e até mesmo seu concorrente Missão Impossível. Só que nesse caso, o espião londrino não é nada discreto e sabe que seu lugar é de destaque, e esse último longa da era Craig, é uma ótima constatação disso.
E Daniel Craig é a personificação dessa mudança de ares. “Controverso”, “rústico”, “covarde”, “insosso”, “baixinho” e até mesmo “loiro”; esses foram os adjetivos usados para desqualificar a escalação de Craig em 2006. O próprio ator tinha desconfiança quanto ao papel, muito por não achar que a personalidade de Sean Connery e companhia poderiam ser replicadas atualmente, muito menos por ele. Para sorte de Craig, era intenção da dupla de roteiristas Neal Purvis e Robert Wade renovar a história antes mesmo do anúncio da mudança de ator. E essa decisão conjunta foi muito significativa pois atribuía a Bond agora um status de personagem do imaginário, e não mais um modelo de masculinidade ultrapassado.
Muito além de um smoking sob medida, um martíni, um sex appeal de falastrão e uma licença para matar, o Bond da era Craig consegue ser mais do que isso. A redoma de vidro que separava personagem do público foi quebrada e os cacos criaram feridas no agente secreto como questões com o luto, traumas de família, problemas com álcool e até mesmo frustrações amorosas, até então inimaginadas para a máquina de sedução criada por Fleming e representada pelos cinco atores anteriores. Mesmo estando mais realista do que nunca, outra renovação da franquia é iminente, e se, tanto esse último filme como todos os outros vão ficar à sombra de Skyfall, o próximo ator a vestir o manto vai permanecer na sombra do maior James Bond da história.