Há 60 anos, Um Dia, Um Gato mudou a história do Cinema

Cena do filme Um Dia, Um Gato. Nela, há uma mulher branca de cabelos castanhos e presos num coque. Ela veste camiseta vermelha e usa batom vermelho nos lábios. Em seu colo, há um gato marrom que usa óculos de sol brancos. A imagem tem baixa iluminação. Ao fundo, há uma cortina verde escura.
No Brasil, o longa-metragem está disponível nos catálogos das plataformas Mubi e Belas Artes à La Carte (Foto: Barrandov Studio/MUBI)

Vitória Vulcano

Considerados animais místicos, os gatos têm um extenso currículo na arte de assumir arquétipos por telhados do mundo todo. Em dado momento do século XX, a fama transbordou e chegou às telas do Cinema tcheco, no qual garras, bigodes e olhos brilhantes se tornaram símbolos cruciais de uma revolução contra a tirania humana. 60 anos atrás, em uma sede de experimentação artística e desalinhamento político, Um Dia, Um Gato proclamou a lúcidos miados que sua fronte imaginativa só pintava e bordava com a devassidão da realidade.

Um certo gosto de fábula à la Esopo se instala logo nos minutos iniciais do longa, que apresentam Oliva (Jan Werich), o narrador em posse de lupa, suspensório e astúcia responsável por “contar uma história com mais verdade do que fantasia”, segundo ele mesmo. Quebrando a quarta parede para recepcionar o público, o castelão e imigrante grego se vale de zoom granulado e trocadilhos rápidos para descortinar a moral questionável dos habitantes de uma vila nunca nomeada, que poderia facilmente ser de qualquer canto planetário.

“Observar a correria da vida é sempre motivo para reflexão. É divertido – quando se gosta das pessoas. Para isso, deve-se olhar as coisas de uma altura apropriada. Não tão alto quanto os cosmonautas. Eles não têm tempo de perceber o que acontece aqui” (Foto: Barrandov Studio/MUBI)

Após construir o cotidiano local, listando desde a idosa que pula em janelas para espiar e renovar seu estoque de fofocas até o homem que finge adoecer para não trabalhar, a pegada universalista e irônica do roteiro de Vojtěch Jasný, Jiří Brdečka e Welrich esbarra nas inevitáveis estruturas de poder da sociedade, aqui materializadas nos conflitos entre o diretor escolar Karel (Jiří Sovák), envolto pelo conservadorismo punitivista, e o libertário professor Robert (Vlastimil Brodský), eterno estimulador da criatividade em sala de aula. Ritmada por concepções tão triviais quanto filosóficas, a dinâmica felino-e-rato vira um verdadeiro deleite generalizado com a chegada de um circo itinerante à cidade.

Além do mágico (outra figura vivida por Welrich) e da jovem trapezista Diana (Emília Vášáryová), a trupe também é estrelada pelo gato Mokol, usuário de óculos de sol antes da moda pegar entre os homens. O pulo do bichano, no entanto, reside no poder de revelar a verdadeira natureza das pessoas quando as lentes são retiradas. Um único espetáculo realizado no vilarejo de Až přijde kocour (título original da produção) basta para colorir uma multidão de pecados: a partir de um único olhar felino, o amarelo pinta os falsos, tons vermelhos irradiam dos corpos dos cidadãos apaixonados, o cinza denuncia os ladrões e algumas pinceladas roxas cobrem inteiramente mentirosos e trapaceiros. 

Com o escarcéu instalado, a narrativa faz seus joguetes fantasiosos e uso pioneiro de pinturas em frames se entrelaçarem de vez nas chagas do universo dos anos 1960 – enquanto as crianças do local se encantam pela magia de Mokol, os adultos começam a planejar maneiras de matá-lo para preservar suas reputações. E, se nos dias de hoje pode parecer lógico só assimilar a ficção a lições de moral engenhosas, o nascimento de Um Dia, Um Gato foi um remelexo na caixa de areia e tanto, integrando o banho de água fria que uma geração de artistas se propôs a dar no autoritarismo então vigente. 

Cena do filme Um Dia, Um Gato. Nela, há um homem branco de cabelos castanhos e curtos, que usa suéter azul marinho e calça de linho preto, com as duas mãos em volta de sua cintura. Ele encara uma mulher à sua frente, que tem cabelos curtos, usa vestido e segura uma bolsa no antebraço direito, além de estar pintada de amarelo. Ao fundo, algumas pessoas estão pintadas de vermelho e outras, em disposição normal, encaram a cena.
Až přijde kocour foi gravado em Telč, cidade da República Tcheca cujo centro histórico é patrimônio mundial tombado pela UNESCO (Foto: Barrandov Studio/MUBI)

Lançado em 1963 – período em que a findada Tchecoslováquia vivia sob invasão e domínio da extinta União Soviética -, o filme surgiu como fruto da Nouvelle Vague Tcheca e filho do meio de uma trilogia criada pelo diretor Vojtěch Jasný. Marcada por nomes como Věra Chytilová (As Pequenas Margaridas) e Miloš Forman (Amadeus), a era de ouro da sétima arte no país manifestava cultura para cutucar o sistema, e, com Až přijde kocour, o cineasta conseguiu encapsular o caos nacional em um conto psicodélico e essencial, ora sátira política, ora crítica social. 

O emprego de diálogos eventualmente improvisados e humor surrealista, somados à participação de amadores e atores profissionais, produz uma atmosfera experimental condenadora da corrupção, opressão e ausência de credibilidade em diversos setores da sociedade ao mesmo tempo que acredita na capacidade humana de recuperar as virtudes mais básicas, como o amor e a tolerância. Seja pela sonoplastia recheada de jazz, que simula passeatas militares em momentos específicos da obra, ou através da coletividade atrevida e transformadora representada pelas crianças (sempre salvando o icônico gato), reconhecemos ferramentas atemporais de resistência e revolução. 

Mergulhando o longa em outras estratégias psíquicas, o estilo teatral da cinematografia de Jaroslav Kučera valoriza aspectos intrínsecos à manufatura tcheca, como suspensões de narrativa exploradas em angústias existenciais e pautas oníricas. O balanço entre luz negra e planos-sequência que associam o retorno da paz ao encontro com a natureza – tanto física quanto espiritual – não poderia despontar em melhor hora.

Cena do filme Um Dia, Um Gato. Nela, há uma mulher branca de cabelos castanhos e presos num coque. Ela veste camiseta vermelha e usa batom vermelho nos lábios. Em seu colo, há um gato marrom que usa óculos de sol brancos. A imagem tem baixa iluminação. Ao fundo, há uma cortina verde escura.
Certa vez, o então presidente da Tchecoslováquia, Antonín Novotný, impediu que Jasný fosse detido pela polícia secreta local: “Ele é um astrólogo e lunático, mas é um poeta. Deixem que ele faça filmes” (Foto: Barrandov Studio/Mubi)

Ainda que Um Dia, Um Gato tenha levado cerca de um milhão de pessoas aos cinemas durante as fases de lançamento e exibição, seu legado ficou amargamente restrito à memória da época a partir de 1968, quando o regime soviético baniu a obra por avaliá-la comouma visão inaceitável das deficiências da sociedade comunista. As sete vidas, contudo, vieram a calhar no século seguinte. O filme, que recebeu o Prêmio do Júri em sua estreia no Festival de Cannes, voltou a ser aclamado na premiação em 2021, após ser digitalmente restaurado pelo Arquivo Nacional Tcheco. 

Os vazios temporais na trajetória do felino impactaram sua identificação nominal ao redor do globo – os títulos When The Cat Comes e The Cassandra Cat, em referência à profetisa grega que tinha suas previsões negadas e ridicularizadas, são outros que apareceram para batizar o longa, que se recusou a cair no esquecimento. Seis décadas distanciam o primeiro miado da era dos streamings, e podemos dizer que o copo de leite envelheceu como vinho em tudo que se refere ao melhor jeito de fazer Arte e escandalizar os vícios da humanidade. Não é exagero dizer que Um Dia, Um Gato mudou a história do Cinema e a nossa também. 

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