Vitor Evangelista
Os anos 10 encurtaram as grandes séries da década passada. Com a chegada do streaming e da degustação on demand, os seriados passaram a ser diminuídos ao máximo, tudo isso para caber numa maratona de fim de semana ou, simplesmente, para não se tornarem enfadonhos. Chegando à seu 3º ano, a premiada e deliciosa The Marvelous Mrs. Maisel já trilha um caminho de despedidas. Ao explorar a turnê nacional de Midge (Rachel Brosnahan), a produção da Amazon emociona, não se vê acuada a tocar em pontos sensíveis e, a cereja do bolo, não cansa de inovar.
Todo esse brilhantismo do show de Amy Sherman-Palladino apenas evoca um senso que grandes mestres da comédia atual como Michael Schur e Phoebe Waller-Bridge já experienciaram: tudo que é bom acaba logo. Enquanto Schur manteve as mais ‘tradicionais’ The Office, Parks and Recreation e Brooklyn Nine-Nine no ar por anos e anos na TV aberta americana, sua mais recente The Good Place encontrará fecho ano que vem, totalizando ‘apenas’ 4 temporadas. A britânica Waller-Bridge, por outro lado, sempre se afeiçoou a produtos mais sucintos. Ela zarpou do leme de Killing Eve depois de apenas um ano, e finalizou as ótimas Crashing e Fleabag com menos de quinze episódios cada.
Dito isso, Mrs. Maisel chega a um terceiro ano sorrateiro. Após ver o marido sair de casa, Midge Maisel (Brosnahan, imbatível) encontra na carreira stand-up um refúgio inesperado. Ela sobe aos palcos de bares e casas noturnas e desata a falar sobre si mesma, sobre seus filhos, seus pais, e sua vida sexual. Não existem linhas que Midge não cruze. A trama progride com a nova-iorquina adotando o stand-up como plano A, e recebendo a proposta de abrir a turnê do cantor Shy Baldwin (Leroy McClain), numa empreitada de seis meses. Ao aceitar o convite, Midge rompe o noivado com Benjamin (Zachary Levi) e, junto de sua fiel escudeira e agente Susie Myerson (Alex Borstein, inacreditável), começa a viajar pela América dos anos sessenta.
Mrs. Maisel é um seriado de papéis moldados. A produção se pega investindo no desenvolvimento de personagens, dando menos prioridade à inserção de caras novas ao Upper West Side. Após ganhar o Emmy de Atriz em Comédia pelo primeiro ano da série, Rachel Brosnahan demonstra mais uma vez o tato em transformam o texto de Palladino num regozijo a quem assiste seus números de comédia, seja dentro ou fora do seriado. Essa terceira temporada, por outro lado, diverte muito mais fora dos sets da comediante do que necessariamente dentro deles.
As rápidas trocas de insultos e reclamações do texto de Palladino (e de seu marido Daniel) evoluem gradativamente até atingirem um pico extraordinário do humor . Esse roteiro recheado de agilidade e ritmo é confortável a quem acompanhou Gilmore Girls, a irmã mais velha e sábia de Mrs. Maisel. Quando Midge sobe ao palco as risadas vêm, é claro, mas seus acts já não soam tão divertidos ou originais quanto nos anos anteriores. O seriado é incisivo mesmo nas conversas de bar, nos gritos à mesa do café no Queens e na reforma de uma casa noturna em Chinatown.
A terceira temporada também adiciona um novo arco para Susie, dando espaço de sobra para a duas vezes premiada com o Emmy de Coadjuvante em Comédia, Alex Borstein brilhar. A agente da protagonista agora vai trabalhar para outros clientes, aqui lê-se a maligna Sophie Lennon. Interpretada com uma ganância pela brilhante Jane Lynch, a personagem se diverte ao estressar Susie numa produção teatral. Com isso, Mrs. Maisel se joga de cabeça nas artes.
Além de explorar o ambiente do stand-up nas casas noturnas, o novo ano brinca com a Broadway, com shows em Las Vegas e investe pesado na criação de auras artísticas que reverenciam os musicais do século que passou. Sobra espaço para experimentações cinematográficas nessa empreitada. Longos takes sem cortes, uma câmera que explora ambientes, descobre belezuras com o espectador. O uso de cores saturadas na iluminação dos números musicais enriquece o estofo do seriado, aliado à poderosa voz de Leroy McClain.
A premiere da temporada, Strike Up the Band, toma partido num show para as Forças Armadas e esbanja o orçamento da Amazon ao filmar uma multidão vibrando com o set de Midge e com o espetáculo de Shy. Já o quinto capítulo, It’s Comedy or Cabbage, entra nos bastidores de um fictício programa de TV, para debater censura e liberdade de expressão, tudo regado a bons drinks e divertidas punchlines da protagonista.
O polido texto de Palladino não obteria tanto êxito nos longos episódios da série sem a força de seu elenco. A começar por Abe, o pai da protagonista. Tony Shalhoub (Monk) é o grande destaque do seriado. Ácido, constantemente estressado e passando pela crise da terceira idade, o patriarca da família Weissman experimenta de tudo na terceira temporada. Após ser preso por violar o ‘politicamente correto’ da época, Abe abre a mente para questões que envolvem censura e a voz do povo. Ao lado de seus camaradas, ele funda um jornal, encontra uma nova paixão profissional e perde a cabeça com Moishe, o sogro de Midge. Mas tudo bem, afinal, são os anos sessenta, cara!.
Moishe, vivido por Kevin Pollak, ganha mais tempo de tela nesse ano. O metodismo do personagem cria a dinâmica ideal para garantir momentos marcantes com Abe. Moishe e sua esposa Shirley (a divertida Caroline Aaron) são o suprassumo da comédia de Amy Sherman-Palladino: caricatos até a página dois, os personagens são periféricos à Midge e seus dramas mas, sem eles, o seriado dificilmente iria engrenar. Aliás, as porções dos episódios dedicados a trama na casa no Queens são o que engatilham um ritmo fluído e consistente à primeira metade da temporada.
Outro alicerce da temporada é Rose Weissman, a mãe de Midge. Marin Hinkle encontra um tom ostensivo de negação e pessimismo em sua interpretação. Sem Rose, a participação de Benjamin (Levi) não se daria, por isso devemos a ela tudo e mais um pouco. The Marvelous Mrs. Maisel está tão afiada em aproveitar o ouro de seu time de atores que todo o plot de Joel Maisel (Michael Zegen) desperta interesse até de quem não simpatiza com o ex-marido de Midge. Em busca de autonomia e autoafirmação, Joel batalha para abrir sua própria casa noturna e, de quebra, abre portas para a inserção da simpática e cheia de mistérios Mei (Stephanie Hsu, bela surpresa).
Conhecida dos fãs de Gilmore Girls, Liza Weil ganha um divertido papel no terceiro ano de Mrs. Maisel. A baixista Carole Keen se transforma numa espécie de confidente de Midge, na ausência de Imogene (Bailey de Young, no pouco que aparece, faz valer a participação). Outra cara famosa que estrela aqui é Sterling K. Brown. Outro vencedor do Emmy, ele que nos faz chorar semanalmente com This Is Us, vive Reggie, o agente de Shy Baldwin. Um personagem de difícil digestão do público, ao passo que a temporada evolui, seu carisma ganha o espectador e Susie, também. Grata adição.
Shy Baldwin trabalha duras camadas quando confrontado por seus demônios internos. A interpretação de Leroy McClain é contida até um certo ponto de efervescência. Sua voz é confortável e navega a câmera e a atmosfera do show num mar tranquilo. Existe uma perceptível constância em tornar crível a figura de Shy como um músico que poderia ter saído do mundo real.
Mas quem saiu mesmo da realidade foi Lenny Bruce. Luke Kirby não se esforça em transmitir a sensualidade inebriante do comediante, tudo vem na maior naturalidade. Essa presença de cena, esse magnetismo visual, são elementos que machucarão nossos corações (e o de Midge) quando a ficção esbarrar na realidade no futuro da série. Bruce morreu de overdose em 1966, apenas seis anos à frente de onde Mrs. Maisel estacionou seu terceiro ano.
Em entrevistas de divulgação do 2º ano da série, Rachel Brosnahan foi perguntada se Midge, por conta de trabalhar fora, amava seus filhos. Alex Borstein foi rápida na resposta: ‘eu estou fora agora, você me perguntaria se eu amo meus filhos?’. O eterno embate vida pessoal versus trabalho é trabalhado em Mrs. Maisel quando vemos retratados em tela dois pais, divorciados e empregados. As crianças são bem cuidadas, é claro. Joel pontua a certo ponto do terceiro ano: ‘eles têm avós que os amam, eles têm uma Zelda (a empregada vivida por Matilda Szydagis), eles têm a nós dois’.
Interpretar uma mulher, uma mãe que decide ir atrás do seus sonhos e não focar sua vida em cuidar dos filhos é um trabalho na corda bamba. Agora, imagine isso num contexto do início dos anos sessenta. A representação que Brosnahan transmite à Midge não é errônea ou equivocada em momento algum. As crianças não são fatores intrínsecos do seriado pois o seriado não é sobre elas. A partir do momento que esse ponto é estabelecido, não há conversa. Midge Maisel é uma mulher completa, e também é uma mãe trabalhadora. O fato do show não mostrar em tela a personagem trocando fraldas ou dando de mamar não significa que ela não faça isso. Esse apenas não é o que deve ser mostrado em tela.
Por mais que os mais diversos looks de Midge transmitam uma energia positiva e radiante, o terceiro ano de The Marvelous Mrs. Maisel termina num tom sombrio. O choque de pavimentar um episódio final completamente no marasmo do agradável e do futuro próspero para, nos minutos finais, puxar as rédeas, é louvável. A coragem de Amy Sherman-Palladino em posicionar seus personagens à beira de perigosos precipícios só reafirma sua aptidão por contar histórias que toquem em nossos pontos sensíveis. E abordagens assim serão sempre bem-vindas.
Thank you and good night.