Gabriel Leite Ferreira
Escrever sobre música é uma tarefa ingrata. De todas as artes, é a mais abstrata, mais subjetiva, mais intangível. As artes plásticas e a literatura tem vertentes, cada qual com suas especificidades. A música também possui tendências e características identificáveis, mas, ao mesmo tempo, é muito difícil de se explicar. Afinal, por que explicá-la se podemos ouvi-la?
Apesar disso, não há como escapar de metáforas abstratas ao falar de “Teen Age Riot”, faixa que abre Daydream Nation, obra-prima do Sonic Youth lançada há 30 anos. Há algo no timbre das guitarras de Thurston Moore e Lee Ranaldo que remete a um mergulho, tal qual o do bebê da capa de Nevermind (1991), do Nirvana.
A atemporalidade do quinto álbum de estúdio da banda mais influente do rock alternativo vai muito além das paredes de guitarras dissonantes, das composições criativamente livres ou dos refrões grudentos. O título dá uma pista. Qual seria a “nação do sonho acordado”? Seria uma constatação sobre o público da banda ou uma crítica aos Estados Unidos? Nem um, nem outro: a nação do sonho acordado eram os próprios membros do Sonic Youth.
Em 1988, a banda estava em atividade há cinco anos e conseguira certa notoriedade pelo experimentalismo desmedido e peculiar (eram rotulados como “no wave”), ainda que sem tradução em vendas. Eles, portanto, não eram novatos quando começaram a compôr Daydream. Na verdade, começavam a contradizer sua autoproclamada “juventude sônica”, pois três dos quatro membros haviam ultrapassado a marca dos 30 anos. Nada como o Sonic Youth para atestar que juventude é, antes de tudo, um estado de espírito.
A obra-prima EVOL (1986), junto a Sister (1987), são o maravilhoso prelúdio da glória de Daydream: não deixem de conferir!!!
Talvez por isso a baixista, vocalista e ícone alternativo máximo Kim Gordon sussurre “spirit desire” (“desejo do espírito”) na etérea introdução de “Teen Age Riot” e logo em seguida profetize: “we will fall” (“nós vamos cair”). É uma canção sobre rebeldia juvenil cantada do ponto de vista de adultos de mais de 30 anos de idade, mas que conservavam dentro de si a gana adolescente de fazer algo importante (nesse caso, a música). A maturidade certamente era um fardo e uma bênção para eles. Afinal, quando a música realmente se tornaria um trabalho recompensador? E se o espírito desvanecer e nós cairmos?
A comparação com a capa de Nevermind não foi gratuita. O clássico gigantesco do grunge não existiria sem Daydream Nation, assim como o Oasis, o My Bloody Valentine, o Sleater-Kinney, o Pavement e toda e qualquer banda que seja rotulada como rock alternativo não existiria sem o Sonic Youth. O impacto da bíblia de 70 minutos é comparável ao de The Queen is Dead (1986), dos Smiths, na Inglaterra: ambos resumiram os anseios de sua geração com um produto bem acabado, complexo mas acessível, com influências variadas e proposta original. Não à toa, o disco duplo foi o primeiro a obter recepção calorosa dos críticos e o último a sair por uma gravadora independente.
Isso diz muito sobre a longa carreira do SY. Kim, Thurston, Lee e Steve Shelley saíram do underground de Nova York lapidando sua sonoridade sem jamais abandonar o ideal velvetiano de barulho como arte popular. Eles ascenderam aos poucos, errando e acertando, e encontraram a forma perfeita ao trazer as longas jams dos shows para o estúdio. A partir daí o sucesso aconteceu.
Não chegaram a rivalizar com o Nirvana, mas se firmaram como grupo primordial para o rock dos anos 90. Atenderam ao “desejo do espírito” sendo pacientes e sinceros, tal qual o adulto que teve uma adolescência selvagem. Pensando nisso, a soturna capa composta pela pintura Kerze (1983), de Gerhard Richter, faz todo sentido: o tesão juvenil contido, equilibrado, ainda queimando. Conformismo, não; maturidade, sim.
Essa maturidade é palpável em algumas referências pivôs da estética. O primeiro nome considerado para Daydream foi Tonight’s The Day, homenagem ao clássico Tonight’s The Night (1975) de Neil Young. As improvisações recorrentes são fruto direto dos antológicos shows do Grateful Dead, notória banda hippie. “Hey Joni”, a sétima música da setlist, referencia a cantora e compositora Joni Mitchell que fez fama nos anos 60 e 70 e “Hey Joe”, primeiro single de Jimi Hendrix. De novo, a visão de mundo mais equilibrada: em vez da iconoclastia radical (eles mesmo gravaram uma canção chamada “Kill Yr. Idols” no começo dos anos 80), o filtro.
Aliás, o álbum pode ser rotulado como rock psicodélico sem prejuízo algum. “‘Cross The Breeze” começa calma, se transforma em um hardcore e depois desacelera com uma fluidez psicotrópica. Alguns versos de “Eric’s Trip” utilizam frases de um monólogo regado a LSD retirado de Chelsea Girls, filme de Andy Warhol – acompanhada dos bends suaves de Thurston e Lee, a faixa se transforma em algo estranhamente suave. A obscura “Rain King” é quase um heavy metal coloridíssimo – seria a névoa púrpura de Jimi Hendrix?
“Kissability” é algo como uma versão drogada de algum sucesso pop dos anos 60: “Você está me deixando louca, você cheira tão bem / (…) nos dê um beijo.” Até mesmo a curta “Providence” contribui para a narrativa psicodélica: “Você precisa tomar cuidado com a maconha, Thurston, sua porra de memória vai pela porra da janela”, diz Mike Watt (Minutemen), amigo pessoal da banda, no recado da secretária eletrônica incluído na música.
Não à toa, por vezes chega a ser difícil identificar o tema da poesia do Sonic Youth. O leque de referências é tão grande que parece mais fácil achar que se trata somente de um amontoado de palavras cool para assuntos banais. Não que não seja – a primeira estrofe de “Silver Rocket”:
Snake in it, jack into the wall
TV amp on fire, blowin’ in the hall
Gun your sled, close your peeping toms
Turbo organizer crankin’ on the knob
Quase impossível de traduzir com exatidão, mas a sonoridade é indefectivelmente legal. Essa, aliás, é a melhor palavra para se definir o Sonic Youth: legal. Estúpida e estupendamente legal. Seja os visuais descoladíssimos ou os clipes altamente vanguardistas, tudo no SY era o suprassumo do cool na cultura pop. Era, não, é; o final foi amargo mas todos os quatro continuam na estrada, tão jovens como sempre.
Kim Gordon, a frontwoman, não por acaso sempre foi o ponto central de toda a estética descontraidamente genial da banda: cabelos loiros escorridos, por vezes com aparência de sujeira, baixos enormes, roupas despojadas, ora punk ora budista em seu visual largado. Isso se reflete inclusive nos vocais.
Compare “‘Cross the Breeze” e “The Sprawl”. “‘Cross the Breeze” é o som de um carro cortando a estrada em alta velocidade em um fim de tarde ensolarado, do já citado sentimento de esperança de se chegar a algum lugar importante. Kim vocifera “Vamos lá, andando na água / Venha por todo o caminho, por favor / Eu quero saber: vou ou fico?”. É a dúvida cruel de ir para uma universidade distante ou ficar mais um pouco na casa dos pais, assim como pode representar o drama de uma mãe de primeira viagem (Kim engravidou em 1994).
“The Sprawl” é um dos momentos mais tranquilos e belos da tracklist, bem como a melhor letra:
Já que eu visto saias e vestidos baratos de náilon
Eu virei uma nativa
Eu queria conhecer a exata dimensão do inferno
Isso soa simples?
Vai se foder, você está a venda?
“Vai se foder” soa simples o suficiente?
Essa foi a única parte que me excitou
Mas ele era todo doceVenha para a loja
Você pode comprar um pouco mais, e mais, e mais, e mais…Eu cresci em uma shotgun row
Deslizando abaixo da colina
Lá fora, na frente estavam as grandes máquinas
Ferro e ferrugem agora, acredito
Atrás, o rio
E aquela grande placa abaixo da estrada
Foi onde tudo começou…
São versos autobiográficos em que ela retoma o papel de adolescente desconfortável e extrovertida que representou durante a juventude. O retrato da loja, do vendedor machista e da tensão sexual controversa entre os dois é um dos momentos mais inspirados de todo o rock’n’roll, sem exageros. O fato da música ser composta e cantada por uma mulher não pode ser subestimado: girl power total e absoluto!
Registro contemporâneo dos Youth: inoxidáveis. R.I.P :'(
A colossal “Trilogy” – três canções reunidas em uma só faixa – é o encerramento da viagem iniciada em “Teen Age Riot” e cujo auge se deu em “‘Cross the Breeze”. “Eu tô só dando rolê / Sua cidade é maravilhosa”, balbucia Thurston Moore no refrão de “The Wonder”, a primeira parte da trilogia. Seria essa última canção o análogo alternativo a “Stairway to Heaven”, do Led Zeppelin? A “Riders on the Storm” dos Doors para roqueiros barulhentos?
Nem importa. Estamos só dando um rolê e tá tudo muito bem, tá tudo muito bom. Precisa explicar?
Um comentário em ““Daydream Nation” continua uma baita de uma viagem”