In Utero completa 25 anos de autenticidade grunge

Da capa às letras, In Utero é todo baseado na fascinação do líder Kurt Cobain pelo corpo humano (Foto: Reprodução)

Hanna Queiroz

In Utero foi o terceiro e último álbum de estúdio do Nirvana, lançado em 13 de setembro de 1993, seis meses antes da morte do vocalista Kurt Cobain. Depois de muita discussão acerca do nome do álbum, que se chamaria I Hate Myself and I Want To Die, o título definitivo foi retirado de um poema que Courtney Love escreveu. In Utero teve vida curta nos vocais do genialíssimo Kurt, mas tem vida longa na mente do público.

1993 foi o ano mais conturbado da banda. Entre o fim das gravações do álbum e seu lançamento, o vocalista sofreu duas overdoses e chegou a ser preso por conta de uma briga doméstica com Courtney. Sua personalidade rebelde, intensa e perturbada se reflete nos últimos suspiros gravados. E também na maneira irreverente como a banda comemorou o fim das gravações do disco: ateando fogo em suas calças.

In Utero é, no mínimo, um álbum polêmico: quebrou a crítica entre aqueles que defendiam Nevermind como o auge da banda e aqueles que acreditavam no grunge em sua forma mais pura, exposta nas músicas cruas e barulhentas. A verdade é que Nevermind foi feito para ser um sucesso estrondoso; dito e feito. Mas In Utero é a essência do Nirvana.

Nas sessões de fotos para o álbum, Kurt, Krist e Dave mantiveram a irreverência que sempre dispensaram para a mídia. Chega a ser irônico, se comparando com o conteúdo mórbido de In Utero (Foto: Reprodução/Anton Corbijn)

A primeira faixa, “Serve The Servants”, reflete o desleixo proposital logo nas suas primeiras e desafinadíssimas notas. A composição de Kurt Cobain demonstra sua inconformidade com o divórcio complicado de seus pais (That legendary divorce is such a bore…). Os versos I tried hard to have a father, but instead I had a dad deixam claro que a relação com seu pai não era algo memorável nem feliz. A geração que lidou com a separação dos pais pode se identificar com a infelicidade do garoto que teve sua adolescência afetada e impressa no imperativo “sirvam os servos”, ou seja, sirvam os pais.

A canção já é o primeiro contraste notável com o disco anterior, que começa com a premeditada “Smells Like Teen Spirit”, não à toa a grande responsável pela popularização da banda.  A estratégia foi alcançar os holofotes com Nevermind e quebrar as expectativas do público com In Utero. A escolha do produtor Steve Albini – conhecido por trabalhar com os Pixies, ídolos de Kurt, e pelo processo nada ortodoxo de gravação – foi o cerne dessa decisão. A verdade nua e crua dói e está impressa em todas as canções do álbum.

“Heart-Shaped Box” é uma das música mais polêmicas do setlist, só ficando atrás de “Rape Me”. Também foi a única a ganhar videoclipe, o último produzido pela banda. Assustador, repugnante e surreal são bons adjetivos para classificar o vídeo, dirigido por Anton Corbijn, que seguiu um roteiro bem detalhado escrito por Kurt. A produção começa com os três membros da banda num quarto de hospital onde um idoso está internado. O principal cenário é teatral e surrealista, semelhante a um desenho infantil. Misturando o cenário aparentemente inofensivo com cenas bizarras e sangue, o mal estar é certeiro.

Nem o diretor do clipe sabe o que se passava na mente de Cobain com aquela ideia e letra. “Alguma ideia sobre um câncer na sociedade ao mesmo tempo que um câncer real. E claramente haviam assuntos pessoais ali. Quem sabe que tinham a ver com drogas ou com a Courtney”, ponderou durante uma entrevista. Há rumores que a “caixa em formato de coração” era a vagina de Courtney Love, quando a cantora tuitou isso em 2012, mas apagou logo em seguida. Entretanto, a caixa foi um presente de Love para o marido.

O verso I wish I could eat your cancer when you turn black, para o escritor da essencial biografia Mais Pesado que o Céu, Charles Cross, “deve ser a mais convoluta via que algum compositor já tomou na história da música pop para dizer ‘eu te amo’”.  Além do mais, Cobain disse em entrevista que o refrão Hey, wait! I’ve got a new complaint é um exemplo de como ele era retratado pela mídia, que sempre tinha alguma acusação a fazer.

Kill yr idols (Foto: Reprodução/Anton Corbijn)

A canção mais polêmica da banda se encontra nesse álbum. Estou falando de “Rape Me”, em que Kurt berra nos vocais pedindo para que o estuprem. Como era de se esperar, foi muito criticada e censurada pela mídia. Em contraponto às interpretações existentes, a música é uma metáfora para a exploração midiática que ele sofria, além de ácida ironia à prática do estupro. Ao pedir para alguém te estuprar, já se está colocando em cheque o ato de abuso sexual não consentido. Essa ironia foi construída para expor ao ridículo quem comete tal crime e criticar a violência que acomete as mulheres. Kurt também se mostrou defensor dessa causa em outras músicas, como “Polly”, na qual relata o caso verídico de uma menina de 14 anos sequestrada, torturada e estuprada.

O álbum se encerra com “All Apologies”, canção simbólica que Cobain dedicou para sua esposa e sua filha no palco do Festival de Reading em 1992. Entretanto, não foi a letra que ele dedicou para as duas, mas sim o sentimento “pacífico e confortável” que a música proporcionava. Realmente, “All Apologies” encerra o álbum com uma sensação merecida de alegria e calma, depois de tantos gritos e emoções experimentadas ao longo das 11 faixas anteriores. A mensagem que Kurt nos deixou em seus últimos versos gravados é que nós somos eternos pedidos de desculpa. All in all, is all we are (“Afinal, é tudo o que somos”).

Versão de “All Apologies” gravado para o acústico MTV Unplugged (1994), último disco lançado pelo Nirvana com Kurt Cobain vivo: tristemente simbólico 

As quatro músicas que foram descritas são o que o álbum possui de mais comercial. Elas “equilibram” o grunge puro, os riffs simples e a voz desafinada em “Very Ape”, “Milk It”, “Scentless Apprentice” e “tourette’s”. Sendo assim, In Utero consegue ser genial até mesmo comercialmente, pois seduz o público com a bizarrice através das faixas mais pops e diversos tipos de emoções: em “Dumb” e “All Apologies” tenho vontade de chorar, mas em “Milk It” e “Scentless Apprentice” a vontade se transforma em querer jogar tudo para o alto e acompanhar os berros. Assim como em “Rape Me” eu penso em crítica social e em como é difícil ser mulher, em “Serve the Servants” reflito sobre minha relação com meu pai e a hipocrisia humana. A simbologia da existência desse álbum, para mim, é a coisa mais linda que Cobain poderia ter deixado como última obra-prima.

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