Ana Júlia Trevisan
Agosto de 2012, Citibank Hall, São Paulo. Luzes apagadas, músicos subindo ao palco, plateia extasiada. Em seguida vem ela, Maria Rita, grávida de 7 meses, usando roupa branca e carregando a missão de eternizar a memória de sua mãe. A caminhada da coxia até o palco é silenciosa. Não há holofotes ou um grande tapete vermelho para a cantora. Peça essencial do espetáculo, a artista interage de maneira íntima com o mecanismo da banda, deixando explícito que a verdadeira estrela da noite é a única e onipotente Elis Regina. A chegada ao microfone é marcada por uma respiração funda, um frio na espinha e os acordes de um potente piano. Nesse momento a sensação é uniforme, podemos sentir um caloroso abraço: mãe e filha se reencontram.
Intitulado de Redescobrir, o projeto, que colocou Maria Rita como intérprete do repertório de Elis Regina, após dez anos de carreira, começou a ser preparado no final de 2011. Inicialmente, a homenagem contaria apenas com cinco shows gratuitos, patrocinados pela Nívea, e receberia o nome de Viva Elis. O intuito era honrar a memória de uma das maiores cantoras do país no começo de 2012, marcado pelos 30 anos de sua morte. Entrega e sucesso imensos, um mar de gente se concentrava nas capitais brasileiras para fazer parte do emocionante reencontro entre mãe e filha, levando ao rebatizamento do projeto e a turnê registrada em CD e DVD, que prosseguiu até meados de 2013.
Piano, baixo, guitarra, bateria e voz se mesclaram em perfeita harmonia para intensificar o espetáculo e exercer a tarefa que sempre foi fácil para Maria Rita: emocionar. “Ai que bom é ver vocês” entoa a cantora nos primeiros segundos de palco. A abertura com Imagem, música que Elis interpretava nos tempos do Fino da Bossa, na Record, aproxima a filha ao público, expressando sua gratidão. Então, em um momento extasiante, a voz da mãe sai do microfone em um breve discurso, enquanto Maria se afasta para trás do pedestal, que permanece iluminado ao passo em que a Pimentinha assume sua presença em Redescobrir. Em sequência, a artista embala Arrastão, o primeiro grande sucesso da mãe.
A intensidade de cada segundo revela que o maior objetivo da cantora é homenagear Elis e seus fãs. Onipresente no palco, Maria não toma o show para si em momento algum. Sua roupa branca feita pelo fiel figurinista Fause Haten, o palco planejado por Helio Eichbauer e a iluminação milimetricamente pensada por Maneco Quinderé ilustram a intenção primária de destacar a progenitora. Filha da primeira pessoa a inscrever sua voz como instrumento na Ordem dos Músicos, a intérprete segue os passos maternos, entrelaçando voz aos demais equipamentos da banda. Integrada à sua orquestra, a potência da filha brilha, mas a estrela maior é a mãe. Maria Rita afirma ser herdeira de um talento inigualável, trazendo Elis no timbre, nos arranjos e nas interpretações.
É Como Nossos Pais, terceira faixa do álbum e mais importante no repertório de Elis, que causa o maior choque emocional. Solene, tributário e irreverente, a composição de Belchior, pela voz de Maria, desata o nó do estômago, ainda fazendo com que irremediáveis lágrimas surjam se manifestem. Nesse instante, toda a militância de Elis, que a consagra como grande cantora, é posta à mesa e prova que a luta por uma pátria livre de seus carrascos ditadores está em sua genética. A partir daqui, Redescobrir deixa de ser apenas uma filha cantando para sua mãe e se torna algo maior: Maria passa também a cantar sobre seus ídolos e sobre as fibras que ligam a si própria ao cordão umbilical.
A canção tão importante para a Música Popular Brasileira, representante de um grito de resistência durante o tenebroso período da história nacional, expõe o desafio que vai além de entoar as canções da mãe, o de embarcar em uma das maiores discografias do Brasil. Enfrentar o calibre do repertório já cantado por Elis é um desafio para qualquer pessoa que vive de música. E, ao longo de 28 faixas, Maria Rita prova ser a pessoa mais capacitada para dominá-las.
O fato da cantora estar muito bem acompanhada em cima do palco eleva a potência da produção musical, refrescando a sonoridade matriz ao mesmo tempo que em ousa inovar em percussões. Existe uma vivacidade nas regravações e nos arranjos criados coletivamente durante os ensaios, que não deixam de remeter ao cânone. São interpretações novas, originais e que referenciam as gravações clássicas, deixando a marca de cada músico nesses arranjos e o respeito ao repertório, assim classificando o projeto como uma vigorosa homenagem e não como um musical com as canções de Elis.
Os dez anos que separam o primeiro disco de Maria Rita e o Redescobrir colocou a cantora em um patamar que a consagra como uma das vozes mais prestigiadas de sua geração. Mas, ao mesmo tempo em que a artista conquistava seu espaço, seja na MPB ou no samba, por mérito próprio, os urubus da mídia insistiam em rivalizar mãe e filha por meio de comparações descabidas.
É mantendo a discografia de Elis intocada por uma década que Maria torna todo o projeto mais intenso e sensível. Não era apenas uma homenagem. Não era apenas duas gigantes no palco. Eram todas essas variantes, acarretadas à volta de Elis para a vida de Maria. Não há adjetivo capaz de descrever a grandeza alcançada pela cantora toda noite em que ela entrava em cena, em frente a enorme expectativa de um grande público, e dava a cara ao desafio de cantar sem sucumbir ao peso e emoção que a cercava.
Homenageando a mãe, Maria Rita ainda encontra espaço para honrar outros grandes nomes da MPB lançados por Elis. Dividindo seu primeiro trabalho ao vivo em dois discos com 14 faixas, extremamente preocupado com a qualidade, memória da homenageada e encadeamento de notas, o show passeia por compositores marcantes e cantores que inspiraram a carreira da progenitora. Para unir grandes nomes como Milton Nascimento, Chico Buarque, Gilberto Gil, Rita Lee, Belchior, Adoniran Barbosa, Tom Jobim e Ivan Lins, a saída foi criar blocos temáticos, em que as faixas sentimentalmente se mesclavam a cantar a história daquela mulher.
Após lidar com a tão aguardada Como Nossos Pais, o roteiro do espetáculo é sequenciado por Vida de Bailarina, Bolero de Satã e Águas de Março para falar de ídolos da adolescência da mãe que, depois, tornaram-se parceiros dela. Mas a emoção vem mesmo à tona no bloco político. Nele, o choro regurgita o destemido trabalho que Elis fez em cantar um Brasil que sonhava em se ver livre das boçais garras de seus tiranos. Querelas do Brasil, O Bêbado e a Equilibrista, Menino e Onze fitas são as canções escolhidas para estampar o repertório setentista da maior cantora do país, ainda reverenciando os corajosos compositores que, com suas letras, ajudaram a dinamitar a ditadura.
A ode a Milton Nascimento vem através de Menino, Morro Velho e se encerra na dobradinha O Que Foi Feito Devera (De Vera) e Maria Maria. São nesses momentos que, além de falar sobre a cantora e a mãe, Maria Rita se emociona ao apresentar a amiga, se enchendo de orgulho em contar sobre o recíproco amor entre Elis e Milton. O intimismo quase místico pelo qual a interpretação de Morro Velho é carregada, mais uma vez comprova o absurdo talento daquela cantora em cima do palco, lutando com as emoções e homenageando sua inspiração maior. Tudo se complementa perfeitamente quando o caloroso público explode na última canção, reiterando que “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana, sempre”.
Para além da emoção que essa viagem proporciona, o que não falta em Redescobrir é uma técnica muito precisa para traduzir cada canção. Em Ladeira da Preguiça, Agora Tá e Aprendendo a Jogar, Maria Rita se mostra solta, interagindo com a banda enquanto brinca com a própria voz. Na sedutora Tatuagem, a artista se imerge na interpretação esbanjando sensualidade, transparecendo seus desejos femininos e, principalmente, provando que se identifica com o repertório que está sendo apresentado, fazendo com que a paixão do público pela mãe encontre a magistralidade da filha.
O clímax de Redescobrir é atingido pela sequência Essa Mulher e Se Eu Quiser Falar com Deus. É aqui que os mundos de mãe-mulher-cantora se colidem a ponto da voz embargar e vermos as lágrimas rolarem pelo rosto da artista num choro de ‘prazer e de agonia de algum dia qualquer dia entender de ser feliz’, se entregando a própria biografia “tenho que dizer adeus/dar as costas, caminhar/decidido, pela estrada/que, ao findar, vai dar em nada/do que eu pensava encontrar”.
Delicadeza, sensibilidade e amor se unem à destreza, precisão e emoção. A interpretação definitiva de Me Deixas Louca é o maior deleite. Ali, Maria Rita se desnuda de qualquer inibição, entregando sensualidade e voz em uma intensidade louvável. Após atingir o nível máximo do prazer, a cantora fica mais leve em suas performances, se divertindo em cima do palco nas faixas seguintes.
Impossível de ser deixada de lado, a amizade entre Elis Regina e Rita Lee – inspiração do nome Maria Rita – aparece em Alô Alô Marciano e Doce de Pimenta, sendo a última nunca gravada oficialmente por Elis. A intenção de Maria de também se reconhecer nas músicas cantadas pela mãe é costurada na composição de Rita, feita especialmente – e sobre – Elis. Doce de Pimenta é uma alusão ao apelido Pimentinha e também uma referência à visita que a artista fez à Padroeira da Liberdade, quando estava presa na época da ditadura. O momento rock´n´roll do espetáculo exala toda a admiração envolvida no projeto, revivendo a generosidade da mãe e deixando transparecer as qualidades herdadas por Maria.
Sua volta para o bis é marcada pela versão acapella de Fascinação. Um arrepio percorre a alma do espectador que viveu a época de Elis ao mesmo tempo em que encanta a nova geração que está sendo apresentada ao espetáculo. O encontro é duplo entre a autoafirmação vocal de Maria Rita e a memória da maior cantora do país. Estamos entrando no fim do show e não é possível conter a forte emoção em Romaria ou na brincadeira de roda feita na faixa-título. Aquela cantora iluminada em cima do tablado não falava ao público que poderia cantar o mesmo que sua mãe, ela a trouxe de volta ao seu cotidiano, às novas gerações e a levou ao Grammy Latino.
Redescobrir é verbo, é canção, é homenagem. Redescobrir é a prova que Elis se mantém viva graças ao carinho do público. Apreciar a experiência de ouvir Maria Rita cantando Elis Regina é a confirmação de que a artista sabe reinventar uma obra amplamente conhecida sem perder sua originalidade. O que fica claro é que não existe imitação, apenas o resgate da memória de outra cantora por alguém que tem o mesmo sangue. Um dos shows mais bonitos do Brasil é uma homenagem à maior intérprete do país, feita pela grande voz da atualidade.
Falar sobre esse álbum é um grande desafio. Desafio não somente por escrever sobre Elis retornando à rotina da Maria Rita, mas pela paixão que sinto por aquela artista vestida de branco e por esse disco ser intrínseco na minha vida. É impossível não me deixar invadir pelo mar de sentimentos que tomam meu corpo e unem a ‘eu’ que escutou esse álbum pela primeira vez e a ‘eu’ de agora. Me sinto arrebatada desde a primeira vez que me deparei com o vídeo da cantora interpretando Como Nossos Pais.
Foi no ineditismo de escutar esse trabalho que finalmente aprendi a chorar. Chorar aquele pranto que lava a alma e estanca as feridas. Sendo o disco mais reproduzido da minha vida, pude sentir a artista que eu estava acabando de conhecer me abraçando, e o sentimento vem sendo presente desde então. Minha admiração pela força que Maria tem ao subir ao palco, o tempo ao tempo até encarar essas canções me ensinou que “somos a semente, ato, mente e voz”. Gratidão. Sempre.