Poker Face não esconde o jogo, mas tem várias cartas na manga

Cena da série Poker Face. Nela vemos Natasha Lyonne interpretando Charlie Cale, uma mulher branca de cabelo loiro extremamente bagunçado. Charlie veste uma camiseta laranja, um casaco de couro na cor marrom e calça e botas pretas. Ela está em um bar onde ocorre um show de rock, por isso, há uma multidão a erguendo.
Poker Face é uma forte candidata para o título honorário de ‘Melhor Série do Ano que Você Não Viu’ (Foto: Peacock)

Guilherme Veiga

A TV é um território onde não se pode errar, mesmo com as produções desastrosas sempre existindo, inclusive na história recente. Nesse sentido, criou-se um lugar seguro de gêneros em que se pode transitar. Tais segmentos definem uma moda em seu respectivo tempo: os anos 2000 foram férteis para as séries de ‘casos da semana’ com House, Supernatural e CSI nadando de braçada; atualmente, as antologias tem seu lugar ao sol com o sucesso estrondoso de Black Mirror e seus filhos como Love, Death & Robots

Porém, toda moda, na verdade, é cíclica. As antologias retomam Além da Imaginação e Contos da Cripta, enquanto o que moldou a Televisão no início deste século bebe de Columbo, série dos anos 1970 que catapultou o gênero de investigação como o conhecemos. Respeitando o intervalo de, pelo menos, duas décadas entre tendências, assim como a estética y2k, Poker Face promete ser a precursora de um possível movimento de retorno.

Cena da série Poker Face. Nela vemos, da esquerda para a direita Charlie Cale, interpretada por Natasha Lyonne e Morty, interpretada por Stephanie Hsu. Charlie é uma mulher branca de cabelos loiros enquanto Morty é uma mulher asiática de cabelos pretos e longos. Charlie usa uma jaqueta na cor marrom-alaranjado, calça preta e bota preta e Morty usa um moletom verde e um gorro azul escuro. Elas estão em uma cabana e Charlie, que está com os cabelos encharcados, está sentada em um sofá branco com listras verdes enquanto olha para um osso que está sobre uma mesa de madeira. Já Morty, que está sentada no chão, olha para cima.
O nome da série faz menção a ‘cara de paisagem’ feita no poker quando queremos blefar (Foto: Peacock)

A obra é uma produção original do Peacock, serviço de streaming – não disponível no Brasil – da rede norte-americana NBC, mesmo canal de Columbo, por isso, pode ser categorizada como um filho pródigo da história setentista. Ela discorre sobre Charlie Cale (Natasha Lyonne), uma estadunidense média que, mediunicamente ou não, tem a habilidade de perceber quando uma pessoa está mentindo apenas olhando em seus olhos. Com esse dom, ela acaba descobrindo um crime em um cassino que culmina no suicídio do gerente, fazendo com que ela seja perseguida pelo pai do falecido e dono do empreendimento.

A partir daí, a obra engata em uma road trip bem ao estilo Supernatural, passando pelos cartões postais dos Estados Unidos que menos vendem em lojas de beira de estrada. Cada lugar, um mistério diferente. Mas esse roteiro você já viu aos montes por aí e a série sabe disso, por isso, brinca com elementos do subgênero. O mistério na verdade é bem claro, nos minutos iniciais de cada episódio você já sabe o que aconteceu, com quem e quem fez. A graça vem quando é revelado como Cale curiosamente está inserida em cada contexto e o que ela faz para chegar à solução.

Nesse sentido, Poker Face também incorpora aspectos de antologia, tanto por seus episódios fechados em si como na trama revelada no final que fecha a temporada, mas diferente de The White Lotus, por exemplo, não usa dessa artimanha para se beneficiar. Por mais que tenha um fio narrativo, ele é bem frouxo e só se amarra devido aos vários nós que a personagem principal dá enquanto percorre as estradas norte-americanas. Para se ter ideia, nem mesmo um elenco fixo robusto ela tem. De personagens recorrentes, somente a Charlie Cale de Natasha Lyonne (Boneca Russa) aparece em todos os episódios juntamente com o capanga Cliff, interpretado por Benjamin Bratt (Miss Simpatia), e o agente do FBI Luca, de Simon Helberg (The Big Bang Theory), que aparecem esporadicamente.

Cena do episódio ‘Escape from Shit Mountain” da série Poker Face. Nela vemos, da esquerda para direita, Trey, personagem interpretado por Joseph Gordon-Levitt e Jimmy, personagem interpretado por David Castañeda. Trey é um homem branco de cabelos pretos e barba por fazer, enquanto Timmy é um homem hispano-americano de cabelos castanhos e barba. Trey usa um moletom e calça de moletom cinza e uma camiseta preta enquanto Timmy veste um sobretudo bege e calça preta. Eles estão do lado de fora de uma cabana de madeira com um letreiro escrito “OFFICE” na vertical e nas cores vermelhas. É noite e está nevando.
A obra conta com participações especiais de Adrien Brody, Hong Chau, Tim Meadows, Jameela Jamil, Joseph Gordon-Levitt, Stephanie Hsu e Ron Perlman (Foto: Peacock)

A ideia e criação são de Rian Johnson, que começou de maneira tímida em Hollywood, mas logo foi escanteado da indústria após o incompreendido Star Wars: Os Últimos Jedi. O cineasta se encontrou novamente na carreira em 2019 com Entre Facas e Segredos, tão bem recebido que rendeu a continuação Glass Onion e o indício de uma franquia de mistério. Poker Face é a prova de que Johnson achou seu lugar no gênero investigativo.

Nesse sentido, é natural vinculamos a série aos longas anteriores, de forma que ela possa ser concebida como se o brainstorming do diretor na concepção dos filmes ganhasse vida, ou até mesmo os crimes que não chegaram às mãos de Benoit Blanc. Através dela, fica perceptível o manejo e destreza que o idealizador tem para escrever e filmar esses tipos de histórias. 

É um pecado que Johnson não tenha tomado as rédeas de forma total da produção, tanto que, mesmo escrevendo todos os episódios, os melhores e mais empolgantes são os que ele dirige: Dead Man’s Hand, The Night Shift e Escape from Shit Mountain. Mas esse ponto é totalmente entendível visto que, ainda que se apresente como uma série procedural, ela pega das antologias a característica de ser uma vitrine para novos diretores.

Cena de Poker Face. Nela vemos Charlie Cale, uma mulher branca de cabelos loiros bagunçados. Ela veste uma camiseta verde militar, um casaco marrom claro, correntes douradas, um anel no dedo do meio da mão direito, um relógio de couro marrom claro no pulso esquerdo e um óculos de lente vermelha. Ela está sentada sobre o capô de um carro antigo na cor azul e segura uma lata cinza de Coca Diet enquanto olha para cima. Ao fundo, vemos uma estrada deserta.
Rian Johnson faz de Poker Face seu parque de diversões (Foto: Peacock)

Sempre transitando em estilos, é difícil categorizá-la e analisá-la de forma contínua. Esse reflexo pode ser notado em suas indicações ao Emmy 2023. Temos ótimos personagens na produção, mas o malabarismo que precisaria ser feito para tentar enquadrá-los em ator ou atriz coadjuvante talvez não valesse o esforço. O problema é o mesmo para ator ou atriz convidado: ainda que contenha atuações como as de Joseph Gordon-Levitt, Stephanie Hsu e vários outros podendo (e merecendo) monopolizar as duas categorias, a divisão de votantes em uma série estreante seria prejudicial para ela mesma.

Nesse cenário, a melhor estratégia da produção é focar suas campanhas nas categorias técnicas de Melhor Coordenação de Dublês em Série de Comédia ou Programa de Variedades e Melhor Design de Produção em Programa de Narrativa Contemporânea (Uma Hora ou Mais). Além de confiar nas indicadas Judith Light (O Menu, Transparent) em Melhor Atriz Convidada em Comédia e Natasha Lyonne por Melhor Atriz em Comédia. Por mais que o páreo seja duro para as duas, Lyonne é quem tem mais chance dado ao seu carisma inigualável, suas presenças recentes nas premiações e por sua atuação carregar a série nas costas na construção de uma Charlie Cale extremamente extrovertida e astuta.

GIF de Poker Face. Nele vemos Charlie Cale, uma mulher branca de cabelos loiros bagunçados. Ela veste uma jaqueta de couro preta, camisa preta, calça preta e botas pretas. Ela está caída no meio da rua de um bairro de subúrbio americano e enquanto olha para a câmera ofegante, faz o sinal do número dois com a mão esquerda.
A série já está renovada para sua segunda temporada (GIF: Peacock)

Poker Face é a definição visual de como um gênero se revitaliza e Rian Johnson já se mostrou extremamente competente em usar dos clássicos para trazer uma nova roupagem aos estilos. Os investigadores sedutores do passado aqui dão lugar para uma carismática mulher que, antes, seria uma donzela indefesa mas, agora, assume um papel minuciosamente desenhado para ela. A produção retoma o formato consagrado ao mesmo tempo que pincela conceitos que a sociedade moderna assumiu para ele, como a fanatização de true crimes e o consumo de podcasts pela audiência.

Caso essa vertente televisiva volte com tudo mesmo, ela encontrou em Poker Face o perfeito ponto de partida. Instigante, inventiva, cheia de charme e cativante desde o primeiro minuto, a produção traz para si o discurso de Lavoisier de que “nada se cria, tudo se transforma” e nos lembra que o clássico tem um motivo para ser denominado assim, porém, ele jamais deve ser copiado e sim revisitado. Agora, se essa moda realmente vai pegar, é um mistério que a própria série terá que responder.

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