Ao juntar algumas faixas, FBC nos faz acreditar que O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta

A foto apresenta o cantor FBC: um homem negro, de cabelo ralo e preto com alguns fios brancos e uma barba volumosa. Ele usa uma regata preta, coberta por um suéter (aparentemente de lã) nas cores roxo, verde-escuro, amarelo e azul-claro, que se mesclam em listras onduladas. Em sua mão está um globo espelhado, símbolo de festas nos anos 70, 80 e 90. O globo reflete pontinhos de luz para toda a foto, sendo iluminado de um lado e totalmente imerso nas sombras do outro. Ele usa um óculos escuro e também uma grande corrente prateada, que apresenta a figura de São Jorge montado em um cavalo. O fundo da imagem é preto.
Num futuro em que a terra se torna inabitável e os humanos migraram para outro planeta em busca de um recomeço, uma dúvida surge: se no espaço não se propaga o som, como as gerações futuras irão escutar música? (Foto: Fábio Augusto)

Aryadne Xavier

Fabrício Soares, mais conhecido como FBC, já trilhava seu caminho na Música há um longo tempo quando seus versos viraram sucesso nacional, no álbum BAILE, parceria com o produtor VHOOR.  Tendo como carro chefe as canções Se Tá Solteira e De Kenner, os maiores triunfos do disco, o conjunto direciona o ouvinte diretamente para o passado ao se utilizarem de batidas que ecoam o Furacão 2000 e o funk brasileiro dos anos 1990, mesclando a nostalgia sonora com versos muito bem estruturados e performados. Após essa explosão, não é de se assustar que alguma expectativa sobre um novo projeto existisse. Em 2023, dez anos depois de seu primeiro EP intitulado C.A.O.S, o padrim retorna com um de seus trabalhos mais potentes e que reafirma seu nome entre os maiores artistas brasileiros da atualidade. 

Em O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta, o artista faz um caminho no mínimo inusitado: em uma era onde quanto mais passível de viralizar no TikTok melhor o seu lançamento será, FBC mira em Jorge Ben Jor e aposta em um respiro no meio de tanta informação. O que parecia ser andar na contramão para muitos produtores, foi a maneira que o autor encontrou de ser fiel a como enxerga sua Arte e como quer transmitir suas mensagens nos dias atuais – e, se vier a viralizar, foi consequência não planejada. Como o próprio já assumiu em recentes entrevistas, não se prender a um único nicho tem sido o guia dessa nova fase de seu trabalho, agora já muito mais amadurecido. 

A foto apresenta o cantor FBC: um homem negro, de cabelo ralo e preto com alguns fios brancos e uma barba volumosa. Ele usa uma camisa bege, com furinhos e botões, além de uma calça de corte reto na cor marrom, com a barra dobrada. Em seus pés, está uma meia de cor roxa e modelo cano alto e um sapato social também marrom. Ele está sentado sobre uma cadeira de madeira, de lado, com o braço apoiado no encosto. A cadeira está sobre um tapete muito decorado. Em seu rosto está um óculos escuro, em seus braços estão pulseiras douradas e pratas, além de um relógio analógico. O fundo da imagem é cinza.
Em letras profundas e intimistas, o rapper mineiro sugere uma forma de se salvar em um possível fim e, de quebra, salva o ouvinte com um trabalho impecável (Foto: Fábio Augusto)

A abertura com MADRUGADA MALDITA já anuncia o tom do que viria a seguir: uma viagem espacial pela disco music. A melhor comparação para compreender a lógica do álbum pode ser entender cada faixa como uma jornada entre uma estação e a próxima, cada uma com seu próprio começo, meio e fim. Nesse primeiro bloco, o registro se mostra extremamente dançante, mesclando com facilidade rimas, referências literárias, analogias entre os efeitos do amor e de substâncias ilícitas e um solo fenomenal de saxofone. Mesmo tendo batidas que realmente cativam (e, por isso, também é indispensável ouvir o disco 2, que é instrumental), as letras continuam repletas de significados e surpresas a quem se dispõe ouvir com mais atenção. Envolvente e de fácil assimilação, as três primeiras produções já criam terreno para o ouvinte se sentir em casa. 

Com  O QUE TE FAZ IR PRA OUTRO PLANETA?, a viagem realmente começa, apresentando o questionamento central e introduzindo também a resposta, que esteve no título do álbum o tempo todo. É notável uma inspiração em Ad Astra (2019), filme de James Gray no qual o protagonista viaja a outros planetas enquanto reflete sobre a complexidade das relações humanas. Esses pensamentos se repetem e se reforçam ao longo do disco, tornando permanente no cerne da obra discutir questões inerentes da nossa existência. Da reflexão desse mesmo longa, surgem as faixas LIMITE COMUM e O NOSSO GRANDE PAPEL, nas quais ouvimos o próprio FBC, em uma espécie de gravação distante, dialogando com o ouvinte. A inserção desses áudios falados entre as faixas cantadas contribui com a narração dos dilemas humanos.

A foto apresenta o cantor FBC: um homem negro, de cabelo ralo e preto com alguns fios brancos e uma barba volumosa. Ele usa uma regata preta, coberta por um suéter (aparentemente de lã) nas cores roxo, verde-escuro, amarelo e azul-claro, que se mesclam em listras onduladas. Em suas mãos está um celular de capinha azul-clara, mas ele não olha para o aparelho; olha para a frente, como que pela lente da câmera. Ele usa um óculos escuro e também uma grande corrente prateada, que apresenta a figura de São Jorge montado em um cavalo. Em seu braço direito está um relógio analógico e em seu braço esquerdo está uma pulseira prateada. O fundo da imagem é um azul escuro.
Em um clima diferente, FBC explora novos mares nesse disco, abarcando o house, a disco music, o EDM e o Amapiano (Foto: Bel Gandolfo)

Em DILEMA DAS REDES, a questão da proximidade que as redes sociais nos trazem fica em jogo: nessa conversa, estamos realmente conversando ou falando com nós mesmos, com o espelho? Em seus versos, assim como nas músicas ANTISSOCIAL e NÃO ME LIGUE NUNCA MAIS, o relacionamento humano e o amor em sua forma romântica ganham enfoque. As reflexões e reações ao olhar o fim movem os versos que fazem o ouvinte questionar: o que seria o mundo sem amor? Segundo o artista, sem ele nem mesmo é possível se salvar, afinal, o sentimento é um dos três pilares que sustentarão a espécie até outro planeta, em sua proposta de um dia a Terra se tornar inabitável. Para acompanhar a obra, talvez seja necessário um certo esforço do ouvinte, se permitindo sentir e explorar – como um viajante – todas as composições. 

A temática, embora bem abordada, teve seu ápice muito por razões da explosão musical que a acompanha. A inspiração para o álbum veio em uma viagem em 2020 para a Europa. Naquela ocasião, FBC mergulhou em playlists de dance music e, desse contato, posteriormente aprofundado, nasce a pesquisa sonora que originou o novo registro. Mesclando elementos de house, disco e soul, o cantor demonstra muita maturidade em composições filosóficas sobre a existência enquanto indivíduo em um coletivo. Com referências diretas de Jorge Ben Jor, o próprio autor afirma que tentou ser 1% do que a lenda da MPB é na Música. Mas não é exagero afirmar que ele tenha alcançado sua meta e ainda ultrapassado.

 foto apresenta o cantor FBC: um homem negro, de cabelo ralo e preto com alguns fios brancos e uma barba volumosa. Ele usa uma regata branca e uma calça preta. Na foto, seus olhos estão cobertos por um óculos escuro. Ele usa também uma grande corrente prateada, que apresenta a figura de São Jorge montado em um cavalo. Em seus braços estão tatuagens pretas. O fundo da imagem é cinza.
A crença do cantor é sútil, mas estampada desde o primeiro momento: o segredo de tudo está em confiar no amor, no perdão e na tecnologia. (Foto: Fábio Augusto)

A derivação de outras músicas, como uma expansão do universo criado em uma composição anterior, ocorre algumas vezes durante as 15 faixas do disco. AHAM e QUAL A CHANCE? falam sobre um relacionamento amoroso, mas cada uma em seu ponto de vista ou, quem sabe, um ponto na linha da história. Com ATMOSFERA, a reflexão talvez chegue na essência de todo o vai e vem de possibilidades para sanar a dúvida central sobre a busca a outro planeta. Aqui, esse novo universo pode existir sem se deslocar geograficamente por milhões de quilômetros, mas sim recuperando a própria humanidade da Terra com o perdão e o amor, sem negar a ciência e a tecnologia. 

No aspecto produção, a obra não deixa a desejar em ponto algum. Acompanhado pela dupla Pedro Sena e Ugo Ludovico, FBC passeia pela história da dance music de maneira muito confiante e harmônica. A ideia de unir música após música como um historiador retratando a evolução cronológica dessa vertente torna a experiência de escutar o disco do início ao fim ainda mais encantadora. Além deles, o naipe de trombone, trompete e saxofone, em união com baixo, teclado e guitarra, participa ativamente das faixas, criando uma atmosfera capaz de transportar o ouvinte diretamente para o universo setentista e oitentista. O coral, que preenche algumas das canções e é composto pelas vozes de Aline Magalhães, Sàvio Faschét, Iolanda Souza, Sarah Reis, Fernanda Valadares, dá lugar aos feats com Don L, nilL, Abbot e Pepito, trazendo dinamismo ao disco.

A foto apresenta o cantor FBC: um homem negro, de cabelo ralo e preto com alguns fios brancos e uma barba volumosa. Ele usa uma regata preta, coberta por um suéter (aparentemente de lã) nas cores roxo, verde-escuro, amarelo e azul-claro, que se mesclam em listras onduladas. Em suas mãos está um objeto que se assemelha a um globo de festa, mas em formato similar a letra “O”, sendo de material brilhante e prateado, e ele olha para o aparelho. Ele usa um óculos escuro e também uma grande corrente prateada. O fundo da imagem é um azul escuro.
A construção “demorada” desse álbum, que surgiu como ideia em 2020, reflete a lapidação de um material que ficará marcado na história nacional (Foto: Bel Gandolfo)

O álbum fecha com DESCULPA, que, mesmo sendo uma palavra tão pequena, chega a ser às vezes mais complexa de externar do que trava-línguas. FBC, após a minuciosa e colaborativa jornada para explorar a mente e os sentimentos humanos, fecha seu novo trabalho reafirmando a importância de perdoar aos outros e a si mesmo. É possível notar o amor, o perdão e a tecnologia, ora separados e ora unificados, em cada um dos títulos.

Mostrando sua capacidade de ir além e se reinventar, FBC destaca ao público geral, após 18 anos de uma carreira muito bem consolidada, como sua criação se expande ativamente. Atingindo top 50 no Spotify Brasil e sendo muito elogiado pela maior parcela dos ouvintes, o artista também oferece uma luz e uma indicação de um caminho: nem todas as músicas precisam ser feitas para durar o tempo de uma trend. Mirando e acertando em cheio, O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta entrega uma obra rica e completa e, em quase 53 minutos – ou mais, se for do gosto do ouvinte apreciar apenas o fundo musical – somos capazes de ir para outro planeta.

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