Nilo Vieira
Em 1997, o rótulo post-rock era recente e até fazia sentido em bandas diferenciadas como o Godspeed You! Black Emperor. Os pilares centrais do rock (guitarra, baixo e bateria) estavam ali, mas eram utilizados em composições mais próximas a Steve Reich e Ennio Morricone – riffs e solos eram substituídos por texturas e orquestrações, peças de longa duração eram regra. Após essa descrição, soa contraditório sugerir que o noneto canadense represente também um novo capítulo na história do movimento punk. Ao considerar este termo como conjunto de ideias (e não estilo musical baseado em três acordes), a comparação fica mais palpável: o nome do grupo veio de um documentário homônimo sobre gangues motociclistas do Japão – assista aqui, os integrantes se declaram anarquistas publicamente e lançam material pela gravadora underground Constellation desde sempre.
A influência da estética punk é nítida no disco de estreia do Godspeed You! Black Emperor, F♯ A♯ ∞ (1997). A versão em vinil é feita de modo artesanal até hoje e inclui uma moeda amassada em trilhos de trem, ao passo em que o livreto que acompanha CD parece uma zine. Se os Ramones romperam os padrões setentistas ao encapsular a energia do rock em canções curtas de três acordes, o GY!BE propõe o oposto. Apesar da presença de mais instrumentos, o núcleo permanece minimalista mas, entre trechos falados, drones e tons de blues, as composições se assemelham a longas colagens fragmentadas. Uma exaltação visceral da anarquia, junta do lembrete de como individualidades distintas constroem um coletivo poderoso ao longo dos tempos – como denota a capa, o processo demorou.
O desafio não era mais criar hinos instantâneos para a revolução, e sim prender o ouvinte por mais de quinze minutos em peças de emoção pungente. Ao invés de versos sobre destruir o sistema, encartes elaborados com ilustrações, diagramas e anotações poéticas serviam como alicerce reflexivo. Explicitar a noção de que mesmo um álbum “instrumental” não se resume à escolha de timbres é radical até hoje, ainda mais de maneira tão incisiva. Vinte anos após seu lançamento, F♯ A♯ ∞ permanece como uma obra-prima, política em todos os aspectos.
Corta para setembro de 2017. Cinco anos após o retorno do Godspeed com o excelente ‘Allelujah! Don’t Bend! Ascend! (2012) – responsável junto de The Seer (2012), dos também pioneiros Swans, a injetar energia criativa de volta ao pós-rock – a onda conservadora ganha força ao redor de todo o planeta. O caos é generalizado, Donald Trump e Michel Temer rendem manchetes vexatórias a toda semana. O futuro é nebuloso.
Neste cenário, é lançado o sexto álbum da banda, Luciferian Towers (2017) e a posição política está mais demarcada que nunca. A capa remete diretamente ao debut, os títulos das canções são agressivos. “Bosses Hang” (patrões enforcados), “Anthem for no State” (hino por nenhum estado), “Fam / Famine” (família e fome). Como protesto, o disco não será enviado para Israel e o release oficial termina de maneira pragmática:
finally and in conclusion;
the “luciferian towers” L.P. was informed by the following grand demands:
+ an end to foreign invasions
+ an end to borders
+ the total dismantling of the prison-industrial complex
+ healthcare, housing, food and water acknowledged as an inalienable human right
+ the expert fuckers who broke this world never get to speak again
Tudo caminhava para um LP coerente com os tempos atuais, não pecassem os pouco mais de 40 minutos pela falta de inspiração e, pior, por jogar na zona de conforto. O noneto acerta ao voltar para composições menos lineares e não se basear em crescendos catárticos, mas a abordagem ambiental não funciona. Enquanto registros como Lift Yr. Skinny Fists Like Antennas to Heaven! (2000) e Yanqui U.X.O. (2002) utilizam de camadas silenciosas para imergir o ouvinte dentro da música, Luciferian Towers se mostra acomodado na função de trilha de fundo externa. As nuances existem, mas a falta de variação (esqueça drones, gravações de campo, spoken word e distorções massivas) torna as coisas etéreas além do recomendado.
Considerando que boa parte do frescor de ‘Allelujah! Don’t Bend! Ascend! (2012), marcado por composições pré-hiato, vem da guinada agressiva colocada em primeiro plano, é quase irônico que o disco mais recente tenha o som mais esperançoso da carreira do Godspeed. Talvez a mensagem seja de que, antes de ir à luta, um indivíduo precisa recuperar a própria força interior; é notável que a banda ainda preza pela construção acima da destruição, como ferramenta de emancipação espiritual e política.
O contraste entre texturas serenas e títulos violentos é uma interessante subversão de conceitos, e denuncia que o senso teatral que tornou o GY!BE diferenciado nos anos 90 ainda está ali. O erro fica por conta de achar que apenas a sugestão de anarquia basta. São tempos de discussões inflamadas entre quadrantes políticos, onde até memes que deveriam ir pra vala do esquecimento em horas ganham holofotes: a insistência na carga simbólica não só parece ter se confundido à carga prática, como muitas vezes aparenta ser prioridade.
Para um grupo que sabe conciliar críptico e sólido, faltou dosar melhor a balança desta vez. A possibilidade de Luciferian Towers ganhar outro sentido em cima do palco (com as tradicionais projeções de fundo e timbres mais crus) existe, mas não melhora a sensação amarga de que F♯ A♯ ∞, com duas décadas de idade recém completas, soa muito mais atual em 2017.