João Gordo: para o bem geral, um traidor

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Nilo Vieira

Não é de hoje que biografias de artistas nacionais causam polêmica no Brasil. Entre grupos de artistas consagrados propondo censura e livros que mais parecem lavação de roupa suja, poucos títulos recentes parecem se importar em cumprir o básico exigido pelo formato. Nem mesmo nas telonas a coisa melhora, com resultados variando entre o pouco aprofundado, desfiles de clichês e retratos romantizados ao extremo.Felizmente, João Francisco Benedan sempre nadou contra a maré: revoltado punk na infância, depois pioneiro do hardcore metálico no Brasil (o que já lhe renderia a fama de traidor do movimento) e então como apresentador da MTV, o homem mais conhecido por João Gordo nunca deixou de lado sua autenticidade. E esse é o principal motivo de sua autobiografia, João Gordo: Viva La Vida Tosca, ser imperdível.

 

Escrito em parceria com o jornalista André Barcinski e lançado pela editora Darkside no fim do ano passado, o livro de 320 páginas se mostra diferenciado desde os aspectos gráficos. Apesar da capa dura, o acabamento em preto e branco dá um ar típico de zine punk à obra, formando um híbrido entre o sujo e o refinado. Completando o conjunto, um marcador em forma de martelo vem de brinde. Mas claro que nada disso faria sentido se não fizesse jus ao conteúdo, o que não é o caso aqui.

Sem farpas na língua, João Gordo relata sua vida errática sem poupar detalhes – a parte onde descreve a descoberta prematura de um fetiche é inacreditável – e com uma linguagem bastante acessível. O tom tragicômico dita o ritmo de boa parte da obra, tornando a leitura leve e viciante. O trecho abaixo é um belo exemplo:

Acabei tomando uma dúzia de pastilhas e fiquei tão doido que não consegui ir no AC/DC, fiquei por lá mesmo e acabei vendo o show da Björk. Puta que pariu! Até hoje nunca vi o AC/DC. Tá vendo, criançada, o que o ecstasy faz com você? Faz você trocar o AC/DC pela Björk!

Apesar do bom humor, Viva La Vida Tosca não esconde histórias pesadíssimas da trajetória de João Gordo. Além de seu envolvimento com drogas, o relacionamento tenso com seu pai (o policial militar Milton), a desilusão com a cena punk nacional e as constantes trocas de emprego e lar rendem capítulos notáveis, mostrando que, apesar de cultuado no underground, o vocalista do Ratos de Porão passou longe de ser um super astro pimpão do hardcore brasilis – muito embora tenha vivido alguns dias de glória, como o período onde ficou amigo do líder do Nirvana, dono de algumas das páginas mais marcantes aqui.

Nessa mesma relação, a figura do boêmio escritor Charles Bukowski surgirá na mente dos mais atentos. Diferente do norte-americano, porém, Gordo não parece querer extrair alguma poesia de seus causos; não economiza críticas a si mesmo e nem a pessoas que já foram grandes parceiros, caso de Max Cavalera (ex-vocalista do Sepultura), além de descartar um desfecho colorido para este livro. Os depoimentos de amigos e familiares seguem a mesma linha, e não aliviam em nada os tropeços do cantor pelo caminho. É disso que honestidade se trata, afinal – e nesse fator reside o grande diferencial da obra: a sinceridade de João universaliza as coisas, e mesmo quem não é seu fã consegue tirar proveito de Viva La Vida Tosca.

Ao lado de Kurt Cobain: o pó que uniu todas as tribos
Ao lado de Kurt Cobain: o pó que uniu todas as tribos

De modo geral, a biografia peca em poucos sentidos. A opção de colocar duplas de páginas de fotos dentro dos capítulos acaba quebrando o fluxo da leitura após um tempo, embora as imagens sejam muito boas. Já na parte onde fala de seu tempo na MTV Brasil, menções mais detalhadas ao polêmico Gordo Freak Show adicionariam muito ao produto – seria interessante ver reflexões do próprio Gordo sobre o programa, ainda mais considerando o panorama do politicamente correto atual.

Nada que prejudique o saldo final, porém. Na contramão da safra atual, João Gordo nos entrega um livro realmente revelador, disposto a explorar com profundidade também os podres do biografado. Bonito de ver e divertidíssimo de ler, Viva La Vida Tosca é uma feliz exceção em meio a tanto moralismo sobre os limites entre vida pessoal e privada de um artista. Mais uma vez, Gordo traiu o movimento. Ainda bem.

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