Ayra Mori
Se em 2009 Garota Infernal foi considerado um crasso fracasso, após uma década de seu lançamento o filme se restabeleceu como Terror cult feminista à frente de seu tempo. Escrito por Diablo Cody, dirigido por Karyn Kusama e protagonizado pela dupla Megan Fox e Amanda Seyfried, Garota Infernal é um estudo de caso sobre como um roteiro perspicaz, um enquadramento subversivo da câmera e personagens autoconscientes são capazes de transfigurar o olhar masculino predominante no gênero, pondo em foco a perspectiva feminina quanto às violações do corpo através de Jennifer e, bem, “O inferno é uma garota adolescente”.
Após o sucesso do encantador Juno, primeiro filme de Cody que lhe rendeu uma vitória no Oscar de Melhor Roteiro Original, um misto de expectativa e incerteza pairava acima do próximo projeto da roteirista – seria talento ou sorte de principiante? Assim, concedida total liberdade criativa pelos grandes estúdios, Cody decidiu abraçar suas ideias mais perversas ao escrever um horror pastiche que centralizasse personagens mulheres, explorasse amizades femininas e, principalmente, que fosse sobre uma garota canibal comedora de homens.
Contudo, historicamente, o exploitation carrega consigo uma má reputação. Nele, sobretudo nas décadas de 1950 à 1970, o papel das mulheres se reduzia basicamente ao prazer de sua dor, voyeurizado pelo olhar masculino (termo conhecido como male gaze, em inglês). E se o gênero por si só já é definido como “lixo”, um filme cuja narrativa concentra-se na transformação de uma garota popular em demônio que se alimenta especificamente de homens – além de ser encabeçado por uma equipe de mulheres –, certamente seria um desafio comercial na época.
Garota Infernal ultrapassou os limites do véu que separa arquétipos igualmente condenatórios da “lésbica frígida” à “burra promíscua”, inaugurando um debate quanto à misoginia internalizada em Hollywood. Jennifer Check (Megan Fox) não é casta, inocente e muito menos é modelo de feminismo, pelo contrário, ela é rude, egoísta e maldosa. Ela está longe de ser a vítima perfeita e, acertadamente, isso não importa no filme. Cody não entrega ao público uma mocinha fácil de se torcer, porém, em momento algum sugere que mesmo alguém tão desprezível como Jennifer mereça passar pelas agonias que passou.
Quando Jennifer acaba sozinha dentro de uma van, rodeada por desconhecidos, o tom de inevitabilidade é indigesto. Ao finalmente se dar conta do que está por vir, não há mais nada que a personagem possa fazer. Ela se desespera, questiona e fracassadamente implora por piedade à banda indie medíocre que, em busca do triunfo à la Maroon 5, é capaz de sacrificá-la em dois segundos. Todavia, a cena, carregada de efeitos visuais alucinantes, traz o ponto de vista de Jennifer, de como ela se sente no momento. A visão dos assassinos não importa e Cody nos estende sua lente, nos encorajando a entender e respeitar Jennifer. Não há fetichização em seu sofrimento e, aqui, a escrita sensível de Cody brilha. Por não ser virgem, o sacrifício dá errado e agora, súcubo, Jennifer inicia uma série de matanças em Devil’s Kettle que estremece a relação com sua melhor amiga Needy (Amanda Seyfried).
Os paralelos com as dinâmicas abusivas de poder na indústria hollywoodiana parecem ser óbvias. No entanto, Garota Infernal não foi produzido na era do #MeToo e muita coisa mudou em 10 anos. Se esses debates de gênero e violência sexual – infelizmente atemporais –, ganharam repercussão em 2019, no ano de 2009 pouco se discutia a questão. Revelando em entrevistas as próprias experiências pessoais pré-#MeToo, Fox chegou a comparar o sacrifício de Jennifer ao da própria carreira: “Eu sentia que estava sendo sacrificada por seus ganhos, quase sem nenhuma preocupação com meu bem-estar físico. […] O que quer que eles precisassem fazer de mim ou me colocar, eles fariam.”
E, de fato, escalada como estrela do filme, a estratégia de marketing se voltou à hiperssexualização do corpo de Fox. O estigma de que o terror não agrada garotas definiu o público alvo de maneira equivocada e Garota Infernal foi vendido para garotos adolescentes como um filme totalmente diferente do que realmente era. A divulgação consistiu apenas no apelo sexual quase pornográfico de Fox, voltado exclusivamente ao olhar masculino – justamente o que Cody e Kusama propunham negar. Não há nudez explícita, Jennifer parece estar doente na metade do filme e o horror corporal não é a melhor definição de sexy. O desastre foi fatal.
Falhando em atrair o público feminino e decepcionando o masculino, a reprovação foi consensual. Tanto a crítica especializada quanto o público, ambos compostos majoritariamente por homens cis, héteros e brancos, repudiou o filme. As avaliações eram negativas, até misóginas, numa época em que artistas como Megan Fox, Salma Hayek e Angelina Jolie, por exemplo, eram tratadas explicitamente como mercadorias sexuais, vistas mais como um rosto bonito do que atrizes talentosas. Para mais, com o advento da internet, blogs de fofoca, perseguição de paparazzis, o ataque à Fox foi intensificado pelo cyberbullying, culminando na sua reclusão, junto com a de Cody, que desencadeou problemas psicológicos.
Mas para além do legado injusto que o filme suportou por efeito das circunstâncias externas que o envolveram, Garota Infernal é uma história sobre a perda da inocência e novas descobertas. O sacrifício de Jennifer pode ter ressuscitado-a, mas seu antigo eu foi morto, sepultado. Ela não é mais a mesma, ela se sente vazia. A amizade platônica entre Jennifer e Needy (tradução de “carente”, o astucioso apelido é derivado de Anita) é um dos indicativos centrais desse amadurecimento. Logo, ainda que a relação entre as melhores amigas tenha sido sempre nociva, é somente quando Jennifer se torna demônio que Needy finalmente se dá conta da ambiguidade dessa “amizade”.
Inicialmente, Needy olha para Jennifer com admiração. Ela deixa o namorado para seguir a amiga assim que lhe é ordenado e a tensão entre ambas é inquestionável, crescendo gradativamente até o estopim do subtexto sexual insinuado na narrativa, quando as amigas se beijam. A cena não dura mais de um minuto e traz à tona a confusão de Needy sobre seus sentimentos reprimidos. O relacionamento codependente delas é claramente mais intenso do que simples amizade, oscilando num complicado espectro que varia entre as melhores e piores sensações do amor e ódio.
Entretanto, a leitura queer sobre o relacionamento delas não propõe, nem ao menos tenta, ser exemplo de uma representação sáfica positiva. Ao invés disso, Cody explora a maneira como, instruídas a competir pelo pouco espaço disponível, as alianças femininas são corrompidas pelo patriarcado, ainda que reluzam sinais de paixão. Por fim, o inimigo se torna outras garotas, não o sistema em si. O brilho do olho de Needy ao olhar Jennifer, antes cintilante, agora se apaga.
Revisitando a obra com olhos contemporâneos, é inegável que Jennifer’s Body reivindicou a estrutura primária do rape-revenge por protagonistas que não se limitam aos arquétipos habituais do Terror – a vítima é cruel, a mocinha se corrompe. A cereja do bolo é o ar camp nostálgico que remete um universo passado com filtro de cores saturadas no qual pessoas usavam o MySpace e penduravam pôsteres de bandas emo nos quartos. Sem qualquer moralização, o filme traça metáforas ácidas sobre o trauma, onde o patriarcado é tão vil quanto o monstro demoníaco enjaulado dentro de uma adolescente canibal. E, infelizmente, Garota Infernal provou na pele o poder do sistema, questionando: quem tem medo de Jennifer Check?