Mindhunter exterioriza os monstros que vivem dentro de nós

Cartaz da segunda temporada de Mindhunter. Na imagem, Bill e Holden estão de costas um para o outro. Bill está à esquerda e é um homem branco de meia idade com expressão rígida e cabelos cortados baixos. Holden está à direita e é um homem branco mais jovem, com cabelos bem penteados e curtos, e uma expressão dispersa. Ambos estão de terno. A imagem é em preto e branco.
O desempenho ruim na audiência da 2ª temporada de Mindhunter foi o motivo do desprezo da Netflix pela série, que segue ignorando o apelo dos fãs e divulgou em 14 de outubro outro projeto com David Fincher (Foto: Netflix)

Nathália Mendes

Mindhunter te faz um convite: sente-se à mesa com os protagonistas da série para entrevistar uma lista de criminosos repulsivos. A década de 70 nos Estados Unidos foi uma máquina de serial killers, mas a onda de horror causada por Ted Bundy, O Filho do Sam e BTK também foi acompanhada pelo fascínio. Da abominação por esses homens, houve a curiosidade e necessidade de entendê-los. O que pensaram para escolher aquela vítima e matar daquela forma? Por que todas as suas ações seguem um padrão meticuloso, específico, premeditado, mas as vítimas são estranhas? A série mostra os pioneiros em fazer essas perguntas cujas respostas são indigestas, na busca por traçar perfis de assassinos – um trabalho da vida real que revolucionou a Unidade de Ciência Comportamental do FBI. E mesmo assim, sem cancelamento ou continuação, a série está há 2 anos no limbo da Netflix.

A maioria das pessoas acha impossível – e abominável – entender a mente de um assassino. “Se entendêssemos as aberrações, seríamos aberrações também” diz Bill Tench (Holt McCallany) para Holden Ford (Jonathan Groff) no primeiro episódio da série. Mas Mindhunter dispôs sua narrativa propositalmente de forma incômoda: ela quer que você se sinta provocado a compreender um serial killer e faz isso através de uma realidade impecável, da montagem à trilha sonora. Nessa estrutura, você é obrigado a emergir entre quatro grades de uma cela, cara a cara com personagens fiéis ao máximo aos assassinos na vida real, e assumindo a mesma função emblemática de um jovem John Douglas no FBI, movido pela ânsia de estudar a face mais vil que um ser humano pode ter.

Cena da série Mindhunter. Na imagem, o personagem de Charles Manson está sentado em uma cadeira no centro e diante dos agentes Holden e Bill. Manson é um homem branco de cabelos e barbas castanhas compridas, veste roupa de presidiário azul claro e está com as mãos nos joelhos enquanto encara Holden. Holden está à esquerda, de costas e Bill à direita, também de costas. O fundo é uma sala de prisão.
O canal do YouTube Eve comparou a entrevista de Charles Manson em Mindhunter com uma versão real feita em 1981 pelo programa 60 Minutes Australia, mostrando a precisão da atuação de Damon Herriman sob sua pele (Foto: Netflix)

Desde sua primeira temporada, Mindhunter montou uma obra de arte sobre a complexidade da mente ao criar um panorama entre a vida de seus personagens e as entrevistas com os serial killers, tendo como ponto central a forma como o pensamento subjetivo provoca comportamentos. Os agentes Bill e Holden foram inspirados no trabalho desafiador que Robert Ressler e John E. Douglas, respectivamente, tiveram em dar lógica para uma violência irracional na vida real. Através das entrevistas, eles foram capazes de catalogar perfis de criminosos para ajudar investigações futuras a identificar e encontrar um assassino em série. Tudo isso é contado em Mindhunter, mas o aspecto mais importante é a motivação que levou ambos e Ann Burguess – representada pela personagem de Dra. Wendy Carr (Anna Torv) – a ouvirem a narração das agressões cotidianamente: o magnetismo por uma violência além da imaginação. E como um ímã, a Arte sente atração em investigar o que é desconhecido.

Entender a mente de um psicopata é algo semelhante a montar um quebra-cabeças em que as peças só se encaixam pela dedução, pois uma mente tão perturbada não funciona além do efeito causa e consequência. Mas o produtor executivo de Mindhunter, David Fincher, já provou a sua aptidão e gosto pelo gênero, no mesmo caminho de Douglas. Em Se7en e Zodíaco, a perspectiva de Fincher mostra o controle que um serial killer tem sobre a situação, incluindo a força policial, mas é em Mindhunter que a característica é explicada de cabo a rabo, e pela versão do próprio assassino ao explicar seus comportamentos após uma história de trauma e violência. 

Por isso, a série deixa de mostrar coisas propositalmente – como as cenas dos crimes em si -, optando por manter-se até o final dando ao público a função de enxergar os crimes mais famosos da história através da narração de seus autores.  E isso é brilhantemente surrealista. Como se o cordeiro tentasse vestir a pele do lobo, o público deve se imaginar com os olhos de Charles Manson enquanto ele fala sobre a liderança de sua seita assassina, explicando algo que aparentemente não entende sobre si próprio. A entrevista com Manson acontece durante a segunda temporada de Mindhunter e é um jogo de roteiro complexo e cortes rápidos de edição, ambos elementos que dão fluidez e uma perspectiva realista para a cena.

Cena da série Mindhunter. Na imagem, a Dra. Wendy Carr está com headphones escutando atentamente. Ela é uma mulher branca de cabelos claros acima dos ombros, está usando uma camisa branca e tem expressão de atenção enquanto segura o fone de ouvido com a mão esquerda. O fundo é uma sala de escritório.
A Dra. Wendy Carr é a única personagem feminina com posição ativa na série ao assumir entrevistas pela primeira vez e tentar se conectar com os criminosos por suas experiências em comum (Foto: Netflix)

Um raciocínio narcisista ao extremo faz parte da característica de um bom psicopata, e a carta na manga de Fincher é evidenciar o crescimento do mesmo traço de personalidade nos agentes que os estudam – e talvez, por querer, no público. O fato é que não há resposta para o debate “homens são naturalmente maus ou se tornam maus?”, então Mindhunter criou o contraste dos assassinos com seu personagem principal para perpetuar o questionamento. Holden é um nerd impecável que tem as camadas de sua personalidade descascadas como cebolas ao longo de sua trajetória com Bill pelos Estados Unidos. A posição que o agente toma diante de suas descobertas é uma mistura de ansiedade e egocentrismo, pois ele tem certeza absoluta de que seu papel é imprescindível para o FBI. Essa característica aparece principalmente nos métodos diferentes que Holden apresenta durante as entrevistas: a curiosidade, a proximidade facilmente adquirida, e, a mais repugnante de todas, o raciocínio em se colocar, com um conjunto de ações, no mesmo plano que os assassinos – ou melhor, em que como cordeirinho, veste a roupa de lobo.

O narcisismo de Holden aflora definitivamente na segunda temporada quando a pesquisa comportamental avança, inclusive ganhando um chefe novo que apoia o trabalho fervorosamente. Mas ainda que o agente seja o cerne do progresso, é impossível não associar a gradação de suas ações autoconfiantes com a sua proximidade ao frio e seguro Ed Kemper, o principal – e mais falante – assassino da 1ª temporada. O desempenho de Cameron Britton na pele do serial killer Edmund Kemper foi tão exuberante que o rendeu uma entre as 2 indicações ao Emmy que Mindhunter teve. Lembrando o personagem de Will Graham (Hugh Dancy) e sua conflitante afinidade com o canibal mais famoso do Cinema, Hannibal Lecter (Mads Mikkelsen), Holden começa a assumir parte de um orgulho compulsivo sobre seu trabalho, algo que mais ressalta sua ingenuidade com o mundo de fora do que de fato prova sua perspicácia.

Cena da série Mindhunter. Na imagem, Holden e Jim se encaram frente a frente na saída de um aeroporto. Jim está à esquerda e é um homem negro de paletó cinza. Holden está à direita e é um homem branco de paletó preto segurando uma mala com a mão direita no ombro. No centro e ao fundo está escrito “Bem vindo à Atlanta” em inglês.
Holden trabalha com Jim Barney (Albert Jones) na Geórgia dos anos 80 enquanto busca por um assassino de crianças negras, mostrando o comportamento de um perfil que não cruza a linha racial [Foto: Netflix]
Com o avanço da segunda temporada, a realidade social ganha uma expressão muito forte, adentrando as falhas do estudo da equipe ao desconsiderarem estruturas sociais e raciais para traçar perfis na busca de assassinos ativos. O questionamento sobre a responsabilidade da sociedade pelos monstros que habitam os seres humanos também cresce exponencialmente, pois o reflexo dos traumas passaram a integrar o comportamento dos personagens principais, ou de enredos maiores. Com a presença e o desenrolar minucioso da história de BTK – um dos assassinos em série mais complexos de todos os tempos – o comportamento é analisado em primeiro plano na série, para além da narração e com cenas misteriosas de sua compulsão por estrangulamento, mas o que seria uma boa continuação foi abandonado por completo.

Desde o início, Mindhunter força a aproximação com a história do mundo real, mesmo que muitos elementos da série sejam apenas ficção, mas isso foi feito de caso pensado para proporcionar uma imersão completa do público como Holden Ford. A curiosidade é aguçada logo de início, e junto com o protagonista, o espectador dá seus passos curtos por um fascínio culposo. O elenco de serial killers assustadoramente fiéis em aparência e trejeitos, um enredo afiado, e a atmosfera densa e amarelada que um bom suspense possui compõem a obra necessária para que ao assistir Mindhunter haja um querer insaciável em entender o incompreensível. No final, o limbo em que a série se encontra causa um tímido alívio por frear o questionamento que cada um assume sobre seus comportamentos.

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