CALL ME IF YOU GET LOST: Tyler, The Creator assume que é perdendo que se encontra e convida quem ouve para essa viagem

Capa do disco CALL ME IF YOU GET LOST, de Tyler, The Creator. A imagem tem um fundo branco, onde está o que parece um passaporte plastificado. Nele, Tyler usa uma touca azul clara, no estilo chapéu soviético. Ele veste uma camisa da mesma cor, com golas estampadas com oncinhas e camiseta branca por baixo. O passaporte contém os dados e assinatura de Tyler Baudelaire, personagem do novo álbum. O título do projeto, “Call me If You Get Lost”, aparece em azul claro como um carimbo no passaporte.
O novo álbum de Tyler, The Creator já é considerado forte concorrente ao Grammy de Álbum do Ano, sendo, segundo o próprio artista, o seu melhor trabalho, “executado num nível que jamais tinha sido atingido” (Foto: Columbia Records)

Andrezza Marques

O sexto álbum do multiartista Tyler, The Creator, lançado em 25 de junho de 2021, coroa a sua melhor fase, escalada a cada lançamento, tanto em técnica e produção, como na autenticidade da execução. Em CALL ME IF YOU GET LOST, o rapper protagoniza uma odisseia de dor e glória compilada em 16 faixas, diferentes de tudo o que já ouvimos – mais uma vez. “Me chame de Sr. sempre em alguma merda que você nunca viu” e “Encontre outro mano como eu, porque eu não vi nenhum”, ele canta ácido na efervescente CORSO, e prova seu ponto.

No novo projeto, o músico retorna às suas raízes para se reinventar, e surpreende, como se esse movimento fosse fácil. Novamente na composição, produção e arranjo de todas as faixas – além da direção artística nos clipes e visuais à moda Wes Anderson, que reproduzem a obsessão por hóteis retrô, magnatas e tons pastéis -, Tyler mescla sucesso e paixão à avareza e amargura. Na nova roupagem, apesar de mais madura, o artista ainda sofre do mesmo mal que se dedica a musicar desde trabalhos anteriores: seu coração partido. 

 Ao entregar a trilogia Flower Boy (2017), IGOR (2019) e CALL ME IF YOU GET LOST, Onkonma expõe, sem pudor, a sua má-sorte no amor, que apesar de alguns momentos apaixonados, nunca parece lhe agraciar com um final feliz. Assim como no penúltimo, o eu-lírico mais recente de Tyler é vítima de uma fortuna obscena, que reflete o seu histórico de aventuras e permanência em triângulos amorosos – obviamente mal sucedidos.

Ainda assim, o álbum extrai o melhor da maturidade e de todos os projetos precursores do cantor. Em vários momentos de CALL ME IF YOU GET LOST, o ouvinte um pouco mais atento ao repertório se sente transportado para trabalhos como, Goblin (2011), Wolf (2013), Cherry Bomb (2015) e até para o próprio IGOR.

A atmosférica faixa de abertura, SIR BAUDELAIRE, nos introduz ao novo eu-lírico viajante e turista até em suas próprias relações, Tyler Baudelaire. Na música, o universo do personagem que ganha vida também começa a ser ambientado. Entre voos e viagens de trem, o destino final é Genebra, na Suíça. 

Além de todo o cenário, o sobrenome escolhido supostamente faz referência ao bon-vivant e poeta francês Charles Baudelaire, que com frequência abordava viagens e pessimismo em seus textos. Considerado um artista maldito e revolucionário, Baudelaire era muito introspectivo e sinestésico em seus versos, descrevendo-se sempre como deslocado e inapropriado. Somando o trio Bastard, Goblin e Wolf e passando por Flower Boy, seria essa referência simples coincidência?

Imagem de Tyler, The Creator recebendo um prêmio no Grammy 2020 junto de sua mãe. Os dois estão ao centro, na frente de um fundo de luzes vermelhas no palco da cerimônia. Tyler usa camisa listrada vermelha e rosa da Golf, e calça marrom social. Esboçando um sorriso, o rapper usa boné marrom, também da Golf, e segurando sua estatueta com uma das mãos, abraça sua mãe com a outra. A mãe está vestida com traje social preto, e chora notoriamente emocionada.
Na foto, Tyler abraça sua mãe após discurso da premiação, exatamente como desejou há exatos dez anos, na letra de Bastard: “Meu objetivo na vida é um Grammy/ Espero que minha mãe compareça à cerimônia” (Foto: Getty Images)

Sob o homônimo, ironicamente, a nova era representa uma versão menos intimidadora e mais segura do criador. Ela também é intrinsecamente mais conectada e verdadeira consigo, talvez por ser vista do alto das suas três décadas de vida, com uma carreira já consistente e um Grammy em mãos, do Melhor Álbum de Rap de 2020 por IGOR.

Apesar do título, o projeto anterior repousa suave e etéreo no dilema ‘ser ou não ser’ um disco de rap (o que independe sua qualidade inegável), ao passo que CMIYGL escancara já no som pesado de LUMBERJACK, primeiro single divulgado, que veio para ser um clássico do gênero, ao mesmo passo em que se estabelece como uma profunda experimentação. 

 A canção que anunciou o álbum faz referência à era das mixtapes e a agressividade dos primeiros trabalhos do rapper. A sensação é reforçada pela presença marcada do icônico DJ Drama, que ‘locuta/grita’ – e incomoda, como sugerem as más línguas – em trechos de todas as canções com menções constantes à clássica tag “GANGSTA GRILLZ”. Sem contar nas participações de membros do coletivo Odd Future ou OFWGKTA, abreviação para Odd Future Wolf Gang Kill Them All

Tyler e os integrantes do grupo Odd Future aparecem em foto num ambiente externo, com asfalto aparente. A frente do grupo, Hodgy, da esquerda para a direita, Domo Genesis, Syd, no centro Frank Ocean e Tyler, The Creator. No fundo esquerdo Mike G, e no fundo direito Left Brain
O grupo, que teve seu auge em 2011, era encabeçado por Tyler e integrado por Frank Ocean, Earl Sweatshirt e Domo Genesis; depois de influenciar toda uma geração e gerar polêmica para a cena, foi findado em 2015, ano de lançamento de Cherry Bomb (Foto: Billboard Publications)

Para quem acompanha o trabalho do artista a partir das eras mais recentes, o contraste causa estranhamento, que era de praxe quando tabloides e fóruns on-line costumavam atribuir o rótulo de horrorcore às produções do cantor. Mesmo com faixas que narravam estupros, assassinatos e transtornos mentais, em entrevistas e declarações, ele sempre negou aproximação com o gênero: os universos e personagens macabros e transgressores revelam a sensibilidade peculiar e o poder satírico do artista.

Os sons intensos, como os de MANIFESTO, LUMBERJACK e LEMONHEAD, provocam essa nostalgia com maestria. O último remete, de algum modo, à debochada TRANSYLVANIA, em que Tyler performa sua versão distorcida e auto-tunada do Conde Drácula. De maneira muito inteligente, a inserção destacada de instrumentos de sopro, já existentes no sample do Rap do Minecraft, dão o tom impactante da faixa. 

Essas são algumas provas de que Tyler se equilibra entre batidas do trap e old school  em CMIYGL, sem tropeçar no óbvio. Ao mesmo tempo em que explora um pouco mais do soul e jazz. Tudo isso, só até que o disco de bossa nova, com guitarras e em espanhol seja lançado, talvez em 2023?

Seguir a regra dos lançamentos bienais há mais de dez anos, desde a mixtape de estreia, é uma das fórmulas mágicas do criador; os intervalos dão ao músico, designer e estilista, tempo hábil para se recuperar criativamente, e também é essencial para que os fãs contemplem e se preparem para a próxima (Foto: Tyler, The Creator)

A sonoridade e sequência totalmente inesperadas atingem o ápice com a décima faixa do álbum e favorita do artista, o pout-pourri atmosférico de SWEET / I THOUGHT YOU WANTED TO DANCE. Precedido pelo refrão e outros trechos na voz de Brent Faiyaz, nome promissor do R&B, a primeira parte do medley narra o que parece ser o início de um romance. 

Já o dancehall, subgênero do reggae, presente na segunda parte da música, traz uma justaposição proposital do trágico fim, que harmoniza perfeito com o groove na voz de Fana Hues. Na faixa, Hues e Tyler vivem um ato de paixão descompassada, com erros de timing (e pseudo traição). Ao lado de WILSHIRE e CORSO, os sons mandam a letra de que a vítima é ninguém mais, ninguém menos, do que um grande amigo do cantor, seria karma, ou o desejo do oprimido?

O clipe da música, que conta com um show alucinado de T. Baudelaire em uma festa infantil, mostra certa aproximação sagaz do presente e passado, representada por garotos de bicicleta que observam sua performance ao vivo do lado externo, e retornam em clipes que parecem ser subsequentes. Mas nem só de decepções amorosas vive o disco, que tem espaço para sons motivacionais, temas como o cancelamento,  intercâmbio cultural, racismo, referência à Amy Winehouse e até um pedido de desculpas à Selena Gomez.

“Tentei roubar a mina de outro cara porque sou uma pessoa má/Não me arrependo de merda nenhuma porque valeu a pena (…)/Vou receber aquele textão quando esse som vier à tona” – Tyler, The Creator em CORSO. 

Fora o apelo ao perdão, a potente MANIFESTO, com o ex-colega do coletivo Domo Genesis, traz recortes de antigas colaborações entre os artistas. Muito mais madura, no entanto, em seus quase seus três minutos que sampleiam o clássico Nazareth Savage, do já consolidado rapper Nas, a track irrompe numa argumentação por vezes sarcástica, Tyler desabafa na abertura:“V*diazinhas brancas vão dizer/“Você precisa dizer algo sobre aquilo”/“Você precisa falar algo sobre negros”/V*dia, chupa o meu…”. 

Além da lírica hostil, o passeio pelo gangsta rap, até em melodias delicadas, é reforçado pelas participações de 42 Dugg, Lil Wayne, YoungBoy NBA e Lil Uzi Vert. E é em meio à samples de neosoul, como em HOT WIND BLOWS, a hipnotizante mudança de direção de JUGGERNAUT, ou o monólogo superprotetor da mãe do rapper – personagem à parte -, presente em toda sua vida e discografia, até na divulgação do álbum, com a faixa MOMMA TALK, que o disco se torna uma deliciosa armadilha sonora.

A melodiosa WUSYANAME e a dançante RUNITUP!, provocam um saudosismo instantâneo e involuntário, já que poderiam muito bem ter saído do Cherry Bomb, ou do Flower Boy, respectivamente. Por outro lado, faixas como SAFARI e BLESSED não se destacam e soam como produções feitas para ocupar espaços de finalização e transição na sequência, e acabam funcionando como tramas coadjuvantes, mas fundamentais para complementar o discurso motivacional e contrastante do bem-sucedido.

E é num ritmo sóbrio que escala para psicodelia e paranoia, bem marcadas por piano e bateria, que a versão mais íntima e honesta de Okonma fica exposta. Nos quase quatro minutos da confessional MASSA, o artista resume altos e baixos da sua trajetória, com habilidade que transcende qualquer personagem.

Magnética, e possivelmente a composição mais importante do disco e até da carreira, MASSA toca em pontos como sua sexualidade, (Tyler sugeriu pela primeira vez ser bissexual em 2017, no Scum Fuck Flower Boy), origem pobre e até a estadia da mãe de Tyler em uma casa de abrigo, situação nunca antes abordada. Segundo o cantor, o fato aconteceu durante a mesma época do lançamento do hit Yonkers – cujo clipe, de acordo com Kanye West, deveria ser considerado o vídeo do ano de 2011, enfatizando a incongruência das circunstâncias.

 Rompantes de distorções vocais que lembram diálogos do Goblin, com um de seus alter egos, analista Doctor TC, aparecem com certa frequência em CALL ME IF YOU GET LOST. Mas é nos momentos de pressão, como nos últimos versos da canção, em que estes elementos soam ainda mais desconcertantes:

“Você não se relaciona com essas coisas que eu digo nesses instrumentais/Seja sobre riqueza ou merdas que são dolorosas/Eu faço pinturas completas a partir da minha perspectiva nessas batidas/Só para você me dizer que isso não é bom para o seu intervalo de almoço”

Nos versos finais de MASSA – e em vários outros – , Tyler dá pistas claras de que ele sempre soube para o que, ou para quem se posicionou: “Se qualquer coisa acontecer, não venha me culpar, América branca”. Acontecimentos como ter sido banido do Reino Unido e da Nova Zelândia por quatro anos pelo suposto incentivo ao “terrorismo”, homofobia e violência, em letras como Radicals, ou a sua desconexão que não “representa o produto esteriotipado do seu meio”, são recursos catalizadores das mensagens do músico, que com exatidão prevê como e para quem irá se projetar, doa a quem doer. 

É com a perspicácia cada vez mais aguçada de quem conhece seu público, mas não se preocupa em agradar sempre, que Tyler trabalha numa equação inversamente proporcional,  atingindo novas audiências a cada lançamento. Assim como o antecessor IGOR, que em 27 de julho de 2021 ganhou o selo de platina, o novo álbum estreou em primeiro na Billboard 200, e esgotou versões Deluxe, que incluíam CD e fita cassete, em apenas um dia. Sem contar as altas avaliações atribuídas, por veículos tradicionais como o jornal The Guardian, do Reino Unido, e o portal nova-iorquino especializado em música alternativa, Pitchfork. 

Tudo indica que CALL ME IF YOU GET LOST é um marco para fãs e para o artista, e tem chances reais de levar novos prêmios para além das categorias nichadas, como em 2019. O álbum foi destrinchado e freneticamente divulgado pelo cantor em seu Twitter, creditado por Tyler como 100% verdadeiro: “Nenhuma história, ou sentimento foi produzido”. Quiçá, seja isso que faz o ouvinte aceitar o convite, e viver uma experiência real: para só ser encontrado, depois de se perder.

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