Bird Box é terror para toda a família

Gabriel Leite Ferreira

Lançado em 2001, Os Outros contou com a estrela de Nicole Kidman e a trama a la Sessão da Tarde para se tornar um dos filmes de terror mais premiados daquela década. Kidman é Grace, mulher cujo marido está nos campos de batalha da 2ª Guerra Mundial. Ela mora em uma mansão isolada com os dois filhos e passa a testemunhar acontecimentos sobrenaturais após a chegada dos novos criados. Bird Box, produção da Netflix lançada no último dia 21, tem muito em comum com a obra de Alejandro Amenábar.

Malorie (Sandra Bullock) é uma pintora recém-divorciada numa gestação particularmente apática. A irmã Shannon (Sarah Paulson) faz de tudo para tentar tirá-la de seu apartamento, sem sucesso. Eis que uma inexplicável epidemia de suicídios atinge a Europa e se alastra até a América do Norte. Malorie, então, vê-se lutando para sobreviver com uma criança no ventre.

O que tinha tudo para culminar em uma distopia moralista (lembram de Black Mirror?) acaba – felizmente – pendendo para o terror psicológico; mais especificamente, para o medo da solidão. Não é mero detalhe a epidemia de Bird Box começar no Velho Continente: países como Noruega e Finlândia são notórios tanto pela alta qualidade de vida, quanto pelos altos índices de suicídio.

Antes do caos tomar conta da vida da protagonista, ela pergunta a Shannon sua opinião sobre um quadro. Parece uma versão mais contemporânea de “A última ceia” de Da Vinci, sobre a qual a irmã opina: “As pessoas parecem tão solitárias.” Malorie retruca: “A solidão é incidental. São pessoas tentando se conectar às outras.”

Malorie (Sandra Bullock) e Shannon (Sarah Paulson), apesar de irmãs, são diametralmente opostas (Foto: Reprodução)

Só a partir daí Malorie se desenvolve como personagem. O prólogo pode ser apressado demais, mas a velocidade faz sentido quando ela percebe que o mundo real que tanto evitava está à beira da destruição. A apatia (dela e nossa) é chacoalhada e não há por quê olhar pra trás, mesmo diante de tragédias irremediáveis. Afinal, sua sobrevivência é dupla.

A boa estratégia narrativa da diretora Susanne Bier dá dinamismo à trama. Flashbacks extensos da Malorie pré-epidemia se contrapõem à Malorie pós-epidemia, conferindo a profundidade que Bullock não transmitia no início. Durante todo o filme, faz grandes esforços pra se conectar às pessoas em redor: Greg (BD Wong), o simpático dono da casa que a abriga durante grande parte do longa, e os colegas Douglas (John Malkovich), Tom (Trevante Rhodes), Charlie (Lil Rel Howery), Felix (Machine Gun Kelly), Lucy (Rosa Salazar), Cheryl (Jacki Weaver) e Olympia (Danielle Macdonald). E, ao contrário do quadro em que estava trabalhando, ela se sai muito bem nisso.

Numa jogada a la Sessão da Tarde, pássaros calmos sinalizam ambientes livres de ameaça (Foto: Merrick Morton/Netflix)

Ei, tu tá na gaiola

O que afasta Bird Box de produções forçadas como Black Mirror e a coloca em pé de igualdade com filmes de terror competentes como Os Outros e O Babadook (2014)? Ela lida com temas complexos e espinhosos da maneira mais natural possível.

Primeiramente, a causa da epidemia é uma entidade invisível; por isso, para ficar imune só usando vendas nos olhos. Quando os personagens descobrem que psicopatas não tiram a própria vida em face do monstro, ele se transforma em algo ainda mais profundo. Ainda assim, nunca é mostrado, o que contribui para a sensação de que é somente uma metáfora para as angústias de Malorie. Em O Babadook, a protagonista é atormentada pela morte do marido, que vem na forma de um monstro tipicamente infantil. Como em Os Outros, o interessante é o significado do tormento, não a causa dele.

Tom e Malorie, o maior casal que você respeita (Foto: Merrick Morton/Netflix)

Bier poderia ter usado a epidemia suicida apenas como crítica aos nossos tempos hiperconectados, mas, em vez disso, preferiu focar na gravidez de Malorie e na sua relação com Tom. Ver uma veterana de Hollywood e o protagonista do oscarizado Moonlight (2017) contracenando já seria por si só bom entretenimento.

Quando ambos embarcam em um romance tórrido, não há como não reparar no caráter interracial do relacionamento. Contudo, em nenhum momento o filme sublinha esse aspecto como essencial para apreciá-lo – e isso é importante. A única falha nesse sentido é o fim abrupto de Charlie (Lil Rel Howery). Howery é parte do cast de Corra! (2016) e merecia mais tempo de tela para se desenvolver, uma vez que praticamente interpreta o mesmo papel do longa de Jordan Peele.

Gary (Tom Hollander) é o único canal entre os humanos sãos e os monstros. A Netflix disponibilizou uma cena deletada que mostra as entidades (Foto: Reprodução)

Há outros personagens cuja função parece não ter sido bem resolvida pela diretora – a simpática porém muda velhinha Cheryl e o casal Lucy e Felix são os principais pontos de interrogação -, mas eles não atrapalham a coesão e o ritmo de Bird Box. Entre os coadjuvantes, o mais interessante é Gary (Tom Hollander), o último a entrar na casa e a pessoa que explica às outras a relação insólita dos pacientes da instituição psiquiátrica Northwood com a epidemia.

Talvez Susanne Bier pudesse ter pesado mais a mão no suspense, mas sua opção por uma trama suficientemente boa com morais não tão óbvias quanto pode se esperar é acertada. Bird Box é um suspense adequado para ver em família que acaba mudando de orientação mas nunca parece perdido em suas intenções. Em suma, não vai mudar a vida de ninguém, mas as discussões sobre seu final enigmático nas redes são sintomas de uma obra que mexe com o espectador. Ou seja, um bom filme. Vale conferir.

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