Vitória Gomez
“O que você acha que realmente aconteceu lá?”. Filmada de costas e sem nunca mostrar seu rosto, uma menina corre ofegante por entre as árvores de uma floresta gelada. O silêncio do cenário é preenchido somente por sua respiração pesada, e o sangue que pinga de sua carne colore o chão coberto de neve. Gritos alheios passam a ser ouvidos: o motivo da fuga vem logo atrás da garota sem identidade. Até que ela, também, para. Presa em uma armadilha, seu corpo empalado chegou ao destino final. Enquanto os adolescentes de Euphoria ensaiavam para o início de mais uma temporada de substâncias sintéticas, figurinos coloridos e pele à mostra, as jovens de Yellowjackets estavam abandonadas à selvageria.
A produção do Showtime opera em duas linhas do tempo. Em 1996, o avião que leva as Yellowjackets à glória no campeonato nacional de futebol cai e deixa as integrantes do time, pequenas estrelas do esporte na cidade, vivendo sozinhas na selva canadense por meses. 25 anos depois, as quatro sobreviventes (a princípio) empurram suas vidas separadamente, todas mantendo o combinado de não tocarem no assunto do que aconteceu naquele tempo. Quando uma jornalista investigativa começa a cavar o passado e um dos personagens que saiu de lá vivo morre inesperadamente, as protagonistas não têm escolha a não ser se reunirem.
Queda de avião seguida de sobrevivência certamente não é um cenário inédito na TV, no Cinema e tampouco na Literatura. Troque o grupo de meninos de O Senhor das Moscas (1954) por garotas adolescentes e intensifique o mistério sobrenatural de Lost para alcançar um terror viciante. Os showrunners Ashley Lyle e Bart Nickerson, veteranos de séries como The Originals e Narcos, certamente reconheceram as narrativas passadas e suas potenciais referências. Seja o ineditismo impossível ou não em Hollywood, Yellowjackets soube apostar em seu grande trunfo: ao invés de retratar passo a passo dos dias das meninas na selva, narrativa batida e há muito explorada, a produção escolhe olhar para suas personagens.
O roteiro, com uma generosa lista de creditados por episódio, avança a narrativa e une suas protagonistas, mas são elas o grande foco e a força central da primeira temporada. Ao passo que os anos 1990 retratam as garotas e seus sonhos adolescentes, bem como seus embates (antes e depois da queda) e o desmantelamento de cada uma dessas expectativas dia após dia, a casa dos quarenta representa a soma dos acontecimentos e mostra o que o quarteto se tornou. Na vulnerabilidade de corpo e mente humana, Yellowjackets encontra seu ápice: mesclando os dois recortes temporais, a nostalgia e o terror do que aconteceu no passado fornecem a base para o que Shauna, Misty, Nathalie e Taissa são e fazem no presente, driblando todos os clichês os quais a trama poderia recorrer.
O que realmente aconteceu ‘lá’ se desenrola ao longo dos 10 capítulos do ano de estreia da produção, em um ritmo angustiante e tenso. Yellowjackets faz melhor do que entregar um filme de horas de duração, com três atos bem marcados e definidos, mas tampouco se adequa ao formato de uma narrativa fechada a cada capítulo, com começo, meio e fim didáticos. Se a alternância entre linhas do tempo também não é novidade no Audiovisual, a série se aproveitou do seu lançamento semanal para não colocar todas as suas cartas na mesa, mas prender o espectador com os próprios mistérios que coloca em seu caminho. As mulheres que conhecemos em 2021, por exemplo, não são as mesmas garotas que iniciaram o Piloto. Os comportamentos do quarteto adulto encontram semelhanças às imagens de suas respectivas figuras juvenis, mas o que as levou até lá só nos resta descobrir – e parcialmente, já que a obra foi planejada para ganhar mais temporadas.
Yellowjackets sabe de seu ponto alto e o elenco brilha em suas duas frentes. Shauna (Sophie Nélisse, quando jovem), Taissa (Jasmin Savoy Brown), Natalie (Sophie Thatcher), Misty (Sammi Hanratty), Jackie (Ella Purnell), Lottie (Courtney Eaton), Van (Liv Hewson) e outras das atletas do time de futebol que saíram intactas da queda se unem em um elenco misturado de protagonistas e coadjuvantes, todas quebrando um pouco mais a cada sinal da ineficácia do resgate. Também, crescem e se fortalecem um pouco mais: viver na selva não é mais paliativo, mas a condição atual – e incerta – das meninas dali para frente. Se elas pretendiam viver esperando o momento do retorno à sociedade, a esperança se vai junto da inocência. O que cresce é o espírito de sobrevivência.
Espírito esse que, sem restrições, vai fazer o que for preciso para sair daquela floresta vivo. A semelhança entre as personagens jovens e suas versões mais maduras vai além da seleção certeira por parte da direção de elenco de Junie Lowry Johnson e Libby Goldstein. A incontestável escolha das atrizes rendeu à obra uma indicação ao Emmy 2022 em Melhor Direção de Elenco em Série de Drama, mas a transformação das personagens, de suas versões antes para depois da selva, também transparece nos paralelos do que nunca mudou.
Enquanto o cerne competitivo e decidido de uma jovem Taissa se mantinha firme até quando colocava em risco a vida de suas colegas, o amadurecimento não a diferenciou. Interpretada por Tawny Cypress, a sua respectiva adulta não hesita em tomar suas decisões de cabeça quente e ergue-se como a voz da razão. Afinal, ela é a sobrevivente que mais chegou perto de retomar a vida planejada antes do acidente. Tai se mostra impassível, mas por trás da fachada de forte e bem-sucedida, foi uma das que mais ganhou assombros dos seus dias no relento, transparecidos nas feições e nos olhos assustados de Cypress.
Já Misty nunca deixou de ser calculista e estratégica. Desde o primeiro momento, a assistente do treinador das Yellowjackets sabia de seus pontos fortes e o que a diferenciava na selva – ela, porém, se deixava levar em sua busca pelo pertencimento. A versão 25 anos mais velha vivida por Christina Ricci é uma das que menos parece ter se transformado e acumulado traumas entre as duas linhas do tempo, e, se a temporada tivesse heróis e vilões, Misty seria justamente a anti-heroína. Nas mãos da atriz veterana, a personagem, completamente lunática e perigosa, ganha um timing cômico e apreciável por sua lealdade e companheirismo – digna de uma indicação no Oscar da TV como Melhor Atriz Coadjuvante em Drama pelo papel.
A questão é que, em Yellowjackets, não há heróis ou vilões. Cada uma das quatro protagonistas fez o que foi preciso para sobreviver e, justamente por isso, são mostradas em suas versões de meia idade. A série não se limita a delinear quantas foram as garotas que saíram com vida da floresta e deixa seus mistérios à cargo do próprio desenrolar do primeiro ano, que o faz mais do que o suficiente para suscitar ainda mais questionamentos e ganchos para uma sequência. Mais do que solucionar as perguntas em seu caminho, as ‘Jaquetas Amarelas’ criam ainda mais incógnitas.
Completamente o oposto de Misty, o que no mínimo rende uma parceria divertida, Nathalie levou seus mecanismos de defesa ao extremo. Apesar de ter encontrado amor na selvageria do acidente, ela é outra que permanece assombrada pelo saldo da queda. A rebelde, ainda teimosa e durona quando vivida pela indicada ao Oscar Juliette Lewis, segue carregando seu traço mais forte, a determinação, e, mesmo se apegando ao passado, está disposta a processar e desvendar os novos acontecimentos jogados nas trajetórias do quarteto. É ela quem não exita em cutucar a ferida e remexer o que se esconde por trás dos enigmas da floresta. Assim como para o grupo de jovens, os mistérios, que têm um quê de espiritual e sobrenatural, permanecem sem resposta para o espectador. Por enquanto.
Graças as intérpretes, o fantástico quarteto adulto se equilibra, em uma dinâmica que mascara as diferenças provocadas pela selva e acentua a conexão já existente um dia. Sem uma explicação plausível para isso, o núcleo de 2021 parece encontrar sua união em Shauna. Desde quando era vivida profundamente por Sophie Nélisse até seu amadurecimento para Melanie Lynskey, a personagem é talvez a mais intrigante de todas. Jovem e adulta guardam seus segredos sombrios firmemente sob uma fachada tranquila, delicada e indefesa. Longe disso, a estrela de Yellowjackets, primeira sobrevivente apresentada no piloto, também se mostra calculista e fria, extirpando suas emoções quando há trabalho a ser feito.
Propositalmente ou não, a escolha das atrizes veteranas que se alçaram ao sucesso na juventude e cresceram sob a luz dos holofotes traduz parte da essência da produção. Após o retorno, os microfones apontados às meninas resgatadas, as páginas de jornais e as especulações sobre o que realmente aconteceu selva afora as levou a se distanciar umas das outras, das vidas pacíficas e normais que poderiam ter levado e até de seus respectivos parceiros. Crescer frente às câmeras, sob uma atenção indesejada com o único intuito de reviver e alardear os maiores traumas das sobreviventes, não estava nos planos do quarteto.
Pelo feito como Shauna, Lynskey foi nomeada na categoria Melhor Atriz em Drama no Emmy 2022, competindo com a dupla protagonista de Killing Eve, Reese Witherspoon em The Morning Show, Laura Linney em Ozark e Zendaya, por Euphoria. Na premiação, as Jaquetas Amarelas também ganharam uma menção dupla na categoria Melhor Roteiro em Drama: os showrunners Ashley Lyle e Bart Nickerson concorrem com o episódio Pilot e F Sharp, esse último com o roteirista Jonathan Lisco creditado junto do duo. O episódio Piloto também é lembrado em Melhor Direção em Drama, pelo trabalho de Karyn Kusama.
Somando 7 indicações em 6 categorias distintas – uma que já foi entregue no primeiro final de semana do Emmy -, Yellowjackets ainda recebe uma das maiores honrarias da premiação: a estreante apareceu em Melhor Série de Drama, categoria das mais antecipadas da noite de 12 de setembro. Competindo com Better Call Saul, Euphoria, Ozark, Severance, Round 6, Stranger Things e Succession, a novata do Showtime não parece impor uma grande competição frente a algumas das veteranas de premiação. Mas as Jaquetas Amarelas já superaram situações piores.