Vitória Lopes Gomez
De um lado, um subgênero cinematográfico que floresce da repressão sexual. De outro, uma obra cujo título se inspira na indicação etária de filmes adultos. Com o nome adaptado da classificação XXX, a destinada aos conteúdos para maiores de idade, X – A Marca da Morte quebra as regras do slasher e, ao invés de tratar o tesão como o perigo a ser temido, coloca o sexo como ponto de partida. Sem vangloriar a pornografia, a produção dirigida e roteirizada por Ti West inverte a ordem do subgênero do Horror e se revela digna de ser chamada de subversiva.
A subversão em questão, porém, diz mais respeito às próprias normas do slasher do que à execução de X (título original do longa). No enredo, que se passa em 1979, um grupo de três atores, um empresário e dois cineastas se isola em uma propriedade rural no Texas para a gravação de um filme pornográfico. Os anfitriões da hospedagem, um recluso casal de idosos, moram no casarão ao lado da cabana alugada e não demoram a descobrir para que os hóspedes vieram a sua propriedade. Tendo desrespeitado o único pedido de não incomodarem a esposa que ali mora, a debilitada Pearl, o banho de sangue começa.
Dentre as convenções do subgênero, a exploração da sexualidade é uma das mais previsíveis (e nunca tediosas), mas que sempre carrega consigo um pressentimento de ameaça iminente. É lei, quando os jovens transam, coisas ruins acontecem. O filme recusa a típica repressão sexual e coloca o aspecto em foco, com o quarteto protagonista viajando à propriedade isolada justamente para gravar seu projeto pornográfico. Só que mais do que estabelecer uma premissa em que o sexo é o pontapé inicial somente para se diferenciar de outras obras, ou para levar o sexploitation ao extremo, X usa-o como um importante subtexto, capaz de mover cada um de seus personagens.
Wayne (Martin Henderson) é o empresário do grupo e Jackson (Kid Cudi), um dos atores. Com o trabalho, os dois escaparam da vida que levavam. Bobby-Lynne (Brittany Snow) e Maxine (Mia Goth) são as duas atrizes, e esperam ganhar fama a ponto de se tornarem símbolos sexuais. A personagem de Snow, inclusive, tem a estrela Lynda Carter como ídola, dando a entender que seus trabalhos como atriz pornô são, possivelmente, um caminho para Hollywood. Já RJ (Owen Campbell) é um aspirante a cineasta, sonhando em fazer do filme pornográfico uma produção artística, e é acompanhado de sua namorada, Lorraine (Jenna Ortega).
West não tem pressa em construir seus protagonistas. Diferentemente do modus operandi dos slashers, que normalmente desenvolvem pouco seus personagens e se apoiam em arquétipos e estereótipos, X toma seu tempo para mostrar os objetivos de cada um em estar ali, reunidos naquela cabana, e adiciona uma camada de profundidade à trama antes do banho de sangue começar. Mas não se engane: apesar da ordem dos fatores ter sido alterada, o resultado é o mesmo e os sangrentos golpes fatais virão. Afinal, ainda estamos assistindo a um slasher.
Ao passo que os visitantes se instalam na cabana, a enclausurada Pearl começa a vigiá-los, com foco especialmente em Maxine. As motivações para o massacre, que segue a descoberta do que o grupo realmente está fazendo na casa ao lado, vêm à tona aos poucos durante X, mas, desde o início, a aproximação das duas se anuncia. Maxine exala jovialidade. Pearl, debilitada pelo tempo e pela idade, é confrontada com a presença da mais jovem, ao mesmo tempo que é atraída a ela. Cara a cara, as duas são o contraste uma da outra antes e depois do envelhecimento.
Na pele da atriz, Mia Goth é ambiciosa e confiante, com a sensualidade necessária para o primeiro papel de protagonista de sua carreira. Brittany Snow e Jenna Ortega, igualmente louváveis com seus sotaques texanos, aprofundam o enredo com as suas diferenças: enquanto a personagem de Snow assume sua sexualidade sem pudores, a Lorraine de Ortega é o oposto. Ao decorrer da convivência com o grupo é que a última dá espaço às novas descobertas, também aprofundando o subtexto da liberdade sexual. Ambas atrizes têm experiência nos filmes de terror e, junto de Goth, são o grande atrativo no elenco de X.
Além de remeter à era de ouro dos slashers no Cinema norte-americano, com referências à O Massacre da Serra Elétrica, Sexta-Feira 13 e O Iluminado, a estética setentista de X é influenciada, também, pelas produções independentes da época. Inclusive, para o diretor, o terror e os filmes pornográficos estavam no mesmo pé de desigualdade: na década em que o longa se passa, ambos viviam marginalizados e na periferia de Hollywood. De acordo com Ti West, X existe na intersecção entre Horror independente e a pornografia dos anos 70, como dois produtos atípicos da indústria audiovisual.
Para realizar uma obra com a premissa de X – A Marca da Morte, o cineasta contou com a ousadia da A24. A produtora estadunidense, que ficou conhecida por seus filmes com forte pegada autoral, apostou tanto na produção de West que, antes mesmo de sua estreia, encomendou uma prequela. Apesar da liberdade criativa concedida pela empresa aos cineastas, o diretor ousou somente dentro do contexto da produção, e parece ter se esquecido de desenvolver um pensamento crítico. É verdade, X se passa em 79 e a indústria pornográfica da época até podia não ser tão agressiva e violenta quanto a de hoje. Além disso, o filme não se coloca como uma propaganda ou a endeusa. Porém, para uma obra lançada em 2022, a mensagem sex-positive atrelada à pornografia já não cola mais, e a obra deixou a diferença só a cargo de seus espectadores.
Apesar de ter chegado aos cinemas americanos em Março, X estreia por aqui somente em Agosto. Com a sua prequel prevista para chegar às telonas ainda em 2022, o filme pode ser impactado pela distribuição tardia no Brasil, e não é a primeira vez que a logística nacional fica para trás no grande circuito de lançamentos. Recentemente, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo e, mais no início do ano, Spencer foram alguns títulos que chegaram às salas meses depois de suas estreias comerciais. Marighella foi outro, dando as caras no país mais de dois anos após sua primeira aparição em Berlim – este, porém, escancarou ainda mais o nosso frágil cenário cultural, com censuras e boicotes à obra por causa de seu conteúdo.
Distribuído pela Playarte Pictures cinco meses depois de ter arrecadado mais de R$10 milhões em bilheteria nos Estados Unidos, X não vai encher as salas brasileiras como poderia. Para os espectadores daqui que esperaram o longa chegar aos cinemas, o filme pode acabar soando morno, o oposto do que realmente é. Algumas descobertas merecem ser desvendadas pela primeira vez ao vivo, na experiência de se assistir à obra. Com um enredo audacioso e divertido, personagens interessantes, mortes criativas e subtextos que fogem dos clichês, X – A Marca da Morte merece ser visto como a primeira vez, em todas as vezes.