Raquel Dutra
“Quando todos dormimos, para onde vamos?”, questionava Billie Eilish em março de 2019. Na época, a artista californiana vislumbrava a realização de um sonho, depois da popularidade de seu single de estreia em 2016, sucedida pela recepção positiva de seu primeiro EP em 2017. Mas assim como todos nós, a jovem promissora na música pop ainda era vulnerável àqueles instantes que precedem o momento em que existimos sob a orientação dos nossos desejos mais profundos. Assim, o sonhar de Billie estava sujeito à influência da aflição que ela sentia por diversos aspectos do mundo que se encantou por aqueles olhos de oceano.
O conflito entre sonho e realidade pode ser interpretado como um dos desencadeadores da primeira narrativa de Billie Eilish, conhecida hoje como WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO?. Diferente do que a artista havia mostrado de sua identidade musical até então (através da branda primeira canção ocean eyes e no colorido extended play dont smile at me), o álbum de estreia de Billie traz elementos sombrios encontrados numa investigação profunda da dimensão psicológica da juventude contemporânea. E quanto às questões que a trouxeram até a concepção estética do disco, ela avisa logo no primeiro single do álbum: “eu não sonho”.
Assim, o objeto de WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO? não é perdido quando Billie Eilish mergulha no inconsciente, sendo também encontrado no consciente. De olhos bem abertos é que a artista compreende o que se passa quando está de olhos fechados, e desta forma, não há o que temer. A estreia de Billie não tem medo dela mesma, nem dos seus desejos, nem de suas maldições, muito menos de seus fantasmas.
Então, ela é ousada ao dar o primeiro passo em direção ao disco. Afiando o seu lirismo e sua sonoridade no corte de uma faca ao lado de seu ouvinte, Billie Eilish profetizou uma jura de poder que passou a ressoar nas rádios pelo mundo a partir de 18 de julho de 2018. Nada mais, nada menos do que a essência de WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO? preenche you should see me in a crown.
Honesta e audaciosa, ela assume sua leitura da sociedade e a utopia da juventude do século XXI. “Eles são muito ruins em aprender” e “Cometem os mesmos erros, culpam as circunstâncias”, identifica Billie como uma legítima filha da geração Z antes de desejar a reverência de cada um desses seres errantes. Curiosamente, a futura dona das paradas não estava preocupada em criar uma música democrática. Ela assume sua tirania, mais uma vez, de forma direta (“Seu silêncio é o meu som favorito”), e acredita na sua forma de governar (“Espero até que o mundo seja meu”).
Como prova da sua capacidade profética, foi mais ou menos o descrito acima que aconteceu quando ela apresentou bad guy ao mundo. Como single de divulgação para o álbum, a canção foi certeira. Não havia lugar de 2019 onde você pudesse estar a salvo da melodia paradoxalmente obscura e charmosa que colocava a alma cínica de Billie Eilish dentro de sua cabeça. Para finalizar a possessão, ela ainda assoprava a obviedade sobre si mesma: “eu sou a vilã, dã”.
O fenômeno da música alavancou o sucesso do álbum, que foi o momento no Grammy 2020. No palco da Música ocidental, bad guy foi eleita a Gravação do Ano e a Canção do Ano, e Billie Eilish saiu vencedora como Melhor Artista Revelação, Álbum do Ano, Melhor Álbum Vocal Pop e acompanhada do título de artista mais jovem ao ser reconhecida com as principais categorias da premiação. A parceria com seu irmão também foi bem-sucedida, e Finneas saiu daquela noite de 26 de janeiro de 2020 eleito o Produtor do Ano no âmbito da Música Não-Clássica assinando um clássico contemporâneo.
Se não há medo, tudo é legítimo. Assim, a liberdade criativa também é um ponto fundamental de WHEN WE ALL FALL ASLEEP. Fazendo uso de memes, confusões emocionais e manipulações sonoras, Billie Eilish e Finneas O’Connell não deixam nenhum sentimento ser considerado indigno de ser verbalizado, analisado e musicado. Nos desejos mais profundos de sua experiência noturna, vale tudo: desde desejar que um menino que a rejeitou seja gay até ironias em modulações de voz e canções de ninar bizarras.
Irreverente mas nunca ignorante e sempre honesta, essa característica de WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO? é outra coisa que Billie deixa combinado logo de cara. “Eu tirei meu aparelho e esse é o álbum”, ela brinca de forma a espantar qualquer ouvinte conservador na faixa de abertura do álbum. E é exatamente assim !!!!!!! que ficamos quando a promessa do pop inicia seu primeiro disco dessa maneira.
Enquanto a personalidade destemida do disco vai além na exploração dos temas, o senso musical de Billie se resguarda às execuções que a artista conhece muito bem. A combinação não poderia ser mais impactante: nos vocais sussurrados e instrumentais tétricos, é como se a Billie encarnasse seus fantasmas para ecoar a voz deles. Quando em si novamente, ela usa a mesma estratégia para respondê-los à altura.
A utopia do Terror se concretiza em bury a friend. Atingindo o auge da perturbação mental, Billie se manifesta de forma teatral: em quatro estrofes, a artista leva seus questionamentos para uma voz que chama pelo nome dela: “O que você quer de mim? Por que não foge de mim?/O que está querendo saber? O que você sabe?/Por que não está com medo de mim? Por que você se importa comigo?”. Por fim, ela não perde a chance de sanar sua fatídica dúvida: “Quando todos dormimos, para onde vamos?”.
Não espere respostas ou salvação. Antes, em all the good girls go to hell, Billie já nos lembrou do destino de uma geração que encontrará o temido sofrimento profundo de uma forma ou de outra, em vida ou depois da morte, no Céu, na Terra ou debaixo dela. A jovem se transforma na profetisa do fim do mundo e veste a sua coroa como ser espiritualmente superior (ou seria inferior?): “O homem é tão tolo, por que estamos salvando ele?”.
O espectro de WHEN WE ALL FALL ASLEEP é amplo. Assim, era de se esperar que depois de visitar as posições mais altas da existência, Billie Elish enfrentaria os lugares mais profundos da sobrevivência. A festa acabou – como já diria Carlos Drummond de Andrade -, e a artista reflete sobre o “e agora?” em when the party’s over. Aqui, o conceito de lírica da jovem é o mais amplo possível: da sonorização e composição musical até a letra e produção da mensagem, a canção se esbalda na finesse de Billie e Finneas, numa faixa que provavelmente seria a favorita dos ouvintes espantados pela abertura irreverente.
Se até aqui Billie Eilish não te desencadeou uma crise emocional, passar impune por listen before i go é um atestado de óbito que só deveria ser assinado ao final da música, como as sirenes sugerem. Chegando ao fim do álbum, a artista encara o imediatismo legítimo de uma geração que vive dez anos em um e tem muito mais experiências do que alguém com o dobro da idade deles. Afinal, “é isso que uma dor de cabeça de um ano faz com você”, e na impossibilidade de seguir adiante com o sofrimento, ela avisa: “Se você precisa de mim/Quer me ver/É melhor se apressar/Porque em breve irei embora”.
Por fim, o refinamento de i love you não contém o medo que o ser humano pode ter de ouvir um eu te amo. Antes de ceder à declaração, os vocais suaves de Billie e Finneas criam uma progressão musical que quase comete um “aleluia” de Leonard Cohen. Na penúltima faixa, WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO? finalmente encontra seu lugar: entre o clamor e o Terror, o sonho e o pesadelo, longe o bastante da realidade mas não o suficiente para atingir o que existe além dela. É lá que estamos quando todos nós caímos no sono.