Jamily Rigonatto
Um piano emite sons leves que caracterizam todo o plano de fundo da cena com a suavidade misteriosa dos clássicos. A câmera se estabiliza nos rostos dos quatro personagens da história, e é com o foco nas feições brandas que Você Tem Que Vir e Ver revela ter algo para nos contar. Entorpecidos pelas notas musicais, Elena (Itsaso Arana), Daniel (Vito Sanz), Guillermo (Francesco Carril) e Susana (Irene Escobar) parecem virar o lar de todos os questionamentos do existir. O filme, dirigido por Jonás Trueba, faz parte da categoria Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e desenhado em tons primaveris, se desmancha em um retrato cotidiano e intimista.
Existe uma tensão quase palpável na interação entre os dois casais, revelada assim que a sinfonia acaba. Os quatro são amigos de velha data e estão se reencontrando depois de um distanciamento, e por mais que os sorrisos neguem, há um ar de desapontamento em suas vozes. O diálogo se desenrola com uma naturalidade ímpar, como se nunca tivesse sido ensaiado antes. Os atores não precisam emitir nada para revelar o misto de emoções que mora em todos os seres humanos: amor, saudade, decepção, inveja, insegurança e outros múltiplos efeitos causados por uma simples conversa. A maneira como a fotografia se alinha contribui para que Tenéis Que Venir a Verla – nome original da produção – diga muito sem dizer. As imagens conduzidas por Santiago Racaj são calorosas e dão destaque a detalhes, gestos e outros elementos construtores dos efeitos da narrativa.
Suzana e Guillermo se mudaram para o interior recentemente e, movidos por uma coincidência bem humorada durante o encontro, contam que esperam um bebê. As reações de Elena e Daniel são afáveis, mas guardam uma ponta de constrangimento – acarretada talvez pela insegurança de não estarem no mesmo estágio de vida dos amigos. Tudo termina com Susana fazendo um convite para recebê-los em sua nova casa, eles tem que ir e ver.
Já de volta em seu quarto, Elena e Daniel realmente materializam os pontos de suas inconsistências e falam sobre se sentirem pressionados a seguir os passos dos amigos. Depois de elencarem as possibilidades da viagem de Madri ao interior, a resposta parece uma negativa ao convite. No entanto, seis meses depois um trem os leva até a cidade de interior para uma visita a casa dos anfitriões. Todo o trajeto é marcado por poucas palavras, mas muitos significados. O foco no livro que leem, na inquietação dos gestos e nos pequenos comentários sobre o quanto a chegada vai demorar, são alguns indicadores da complexidade carregada pelos personagens.
Um dos pontos de destaque na construção do encontro é a expectativa quebrada da gravidez de Suzana. Quando esperamos ve-lâ com a gestação avançada, prestes a receber a nova vida, o retrato entregue é outro. Ao conversar com Elena, o tom é empático e, da forma mais sutil possível, traz a reflexão dos impactos da maternidade, da contrução do aborto na vida das mulheres e da pressão social condutora do papel feminino na sociedade.
Durante a visita, as amarras dos casais parecem dar lugar a memória e afeto. Após um tour pela casa e uma conversa acalorada sobre o livro que Daniel e Elena estavam lendo, o quarteto joga pingue-pongue como se tivesse toda a suavidade do mundo pendurada nas raquetes. A direção de Trueba conduz os elementos com tanta naturalidade que a situação não salta os olhos com nenhum impacto ou reviravolta: os significados escolhem se guardar nas entrelinhas e nas interpretações únicas de cada telespectador.
A citação ao livro de Peter Sloterdijk, You Must Change Your Life, amarra os contextos da produção do início ao fim. Nas descrições do homem moderno, o filósofo reflete sobre o papel da arte nas sociedades e como sua força foi se perdendo com o passar das eras, fazendo com que as pessoas escolham formas soltas de se distrair. A afirmação culmina em um pequeno debate entre os amigos, Suzana diz discordar e a cena se dilui em argumentação e trivialidade. A citação inevitavelmente nos rememora da abertura do filme e do toque noturno do piano em um café espanhol, naquele momento a arte parecia estar exercendo toda a fascinação metafísica que há no mistério do ser.
No fim, enquanto caminham por uma área arbórea da região e continuam com as conversas cotidianas, Elena diz que precisa fazer xixi e a câmera revela a equipe de produção nas lentes. O movimento dos equipamentos, cenários e do diretor se misturam aos protagonistas e o real se funde ao ficcional. O movimento é metalinguístico, a conversa da arte com a vida em proporções filmográficas. O impacto do universo artístico respira em ressonância e restam apenas os créditos.
É assim que, em pouco mais de uma hora, Jonás Trueba encaixa muito em pouco. O roteiro, também assinado pelo diretor, é semelhante aos encontros em bares nos fins de tarde e faz o ato de existir na atualidade se minimizar aos limites de um desfecho cinematográfico. Suzana, Guillermo, Elena e Daniel são nossos espelhos, mas também são nossos amigos e a quebra da quarta parede nos últimos frames só confirma que sempre fizemos parte do interior da narrativa.
Caso exista uma única palavra capaz de definir Você Tem Que Vir e Ver, serenidade seria uma boa escolha. Entre diálogos limitados e cenários rotineiros, o filme se imprime em quem assiste sem precisar invadir, como se as portas do âmago estivessem sempre abertas a receber provocações tênues. Mas meus vislumbres podem ser subjetivos demais, você tem que ir e ver.