Bruno Andrade
Mais de uma década separam a saída de John Frusciante do Red Hot Chili Peppers e o lançamento de Unlimited Love, álbum que marca seu retorno triunfal. Nesse período, muitas coisas aconteceram. O guitarrista Josh Klinghoffer, visto desde sempre como um pupilo de Frusciante, ingressou no grupo, gravou dois álbuns e depois foi retirado do RHCP, como ele próprio revelou em entrevista. Tudo indicava que o retorno de Frusciante – visto há anos como o clássico guitarrista do quarteto, mesmo que outro guitarrista tivesse dominado o instrumento antes dele – seria o esforço genuíno em recuperar a faísca dos anos dourados. Embora essa seja uma característica visível no projeto lançado em 1º de abril, Unlimited Love não soa como ninguém além dos próprios Chili Peppers.
Não parece ser segredo que o Red Hot Chili Peppers é o que é pela identidade instrumental do grupo, composta pelo baixo funkeado de Flea, a bateria com tempos partidos de Chad Smith, e, principalmente, pela guitarra cintilante que há anos mudou de dono. Quanto ao mais importante dos guitarristas, os números não mentem: com John Frusciante integrando o elenco, a banda ganhou três Grammys – incluindo o de Melhor Álbum de Rock por Stadium Arcadium (2006) –, três BRIT Awards e cinco MTV Music Awards, além de diversos outros prêmios concedidos por revistas. É extremamente difícil não ligar o quarteto ao clássico Californication (1999), ou aos backings impregnantes que Frusciante fez ao longo dos anos, os quais sempre acompanharam sua guitarra “chorada”, saturada de distorções e de chorus na medida certa.
Mas também é interessante notar o amadurecimento mais do que gritante que Josh Klinghoffer conquistou no grupo. Depois de sua modesta estreia como o principal guitarrista em I’m with You (2011), houveram críticas duras, as quais ele, sabiamente, escutou. Em The Getaway (2016), um álbum que por si só apontou os novos caminhos que os californianos poderiam tomar – sem deixar sua base funk rock de lado –, Klinghoffer aparentava ter se estabelecido como a nova cara que a banda precisava, a mesma que veio se reinventando por anos – a própria entrada de Frusciante, em 1988, corrobora a ideia de reinvenção, pois só ocorreu devido a morte de Hillel Slovak, membro fundador do RHCP. Nesse cenário, seu retorno soa um pouco esquisito, e por si só anula a ideia de renovação que a banda argumenta buscar; todavia, a verdade indigesta é que, desde o início, Klinghoffer foi um guitarrista substituto.
Unlimited Love é composto por 17 faixas espalhadas ao longo de 73 minutos, abrindo com Black Summer, canção que evoca a calmaria de Otherside, e que com menos de 2 minutos joga em nossos ouvidos o primeiro solo de guitarra, como se tentasse nos lembrar a quem pertence esse álbum. Isso se segue ao longo do CD, e chega a parecer que há uma mistura de várias fases da banda – todas as quais Frusciante pertenceu –, soando quase como uma colagem musical composta a partir de uma pesquisa nos arquivos do grupo, e talvez a parte mais difícil desse retorno tenha sido justamente encontrar o tom. Quando uma pessoa retorna a um projeto antigo, após ter participado dos momentos altos deste mesmo projeto no início, como escolher somente uma pequena fração dessa história para se desdobrar e conceber algo novo?
Contudo, a simples junção de coisas distintas acaba, por si só, originando um novo projeto. O paradoxo consiste no fato de que, justamente, não há nada novo. É um disco do Red Hot Chili Peppers que bebe da carreira do próprio Chili Peppers, e talvez essa seja sua graça, pois não há demérito algum na autorreferência – nesse caso particular, são 39 anos de carreira. Após um tempo ouvindo Frusciante experimentar na Música Eletrônica, vê-lo novamente com guitarras em punho é quase realmente como cortar o passado, pois nem mesmo sua interessante parceria com Omar Rodriguez Lopez, do At the Drive-In e The Mars Volta, seguiu adiante. “O que achei emocionante quando comecei a tocar com eles [novamente] foi ver o que eu poderia fazer com uma guitarra”, disse John em entrevista de 2020.
O disco segue um mesmo padrão, mas mesmo sob essa condição existem músicas muito boas e outras apenas regulares. She’s a Lover, Whatchu Thinkin’ e It’s Only Natural – canção que contém ecos de Hey – exalam Stadium Arcadium desde o começo, figurando facilmente como as melhores do CD, principalmente pelos solos de guitarra (o protagonista desse álbum é John). Na mesma linha, One Way Traffic parece uma adaptação mais serena da ótima Hump de Bump, enquanto Let ‘Em Cry tem uma levada reggae interessante e até então inédita – algo muito curioso, dado as referências do grupo.
Frusciante trouxe de sua carreira solo elementos da Música Eletrônica, evidentes nas faixas Bastards of Light e Not the One, mas que, honestamente, já vinham sido apontados no último disco da banda, ainda com Josh Klinghoffer no elenco. Apesar de conter 17 músicas, Unlimited Love se encerra para Flea e Chad Smith em The Heavy Wing; isso porque a faixa final, Tangelo, consiste na voz de Kiedis e Frusciante ao violão, envolta de um sintetizador espaçado, numa aparente alusão a esse “amor ilimitado” anunciado desde o começo – um certo tipo de reconciliação, não apenas entre os integrantes, mas com seu próprio passado.
Um dia antes do lançamento do disco, a banda recebeu uma estrela na calçada da fama de Hollywood, algo que talvez ambiente um pouco o cenário que cerca esses quatro integrantes. A aura nostálgica envolta de Unlimited Love resplandece no fato de que essa não é a primeira vez que Frusciante retorna ao grupo. Em 1992, após a turnê de Blood Sugar Sex Magik (1991), John Frusciante deixou o Red Hot pela primeira vez – de 1993 a 1997, Dave Navarro assumiu a guitarra, dando origem ao disco One Hot Minute (1995). Ele retornou em 1998, marcando, até sua saída em 2009, a melhor fase da banda em anos. Suas entregas ao vivo foram dignas de prêmio, sempre readaptando solos, criando novas camadas musicais e realocando espaços inventivos em canções nem tão inventivas assim.
O olhar clínico e harmonioso do guitarrista – mistura de referências entre o Gang Of Four e Jimi Hendrix – apontaram para um caminho em que se vislumbrou uma repaginada mais artística e esteticamente mais atraente ao grupo – basta comparar à banda pré-1990: é quase outro Chili Peppers, com um foco demasiado no baixo de Flea. Ainda assim, Unlimited Love não apresenta nenhum momento de alta adrenalina que chame atenção – como os discos de seus anos dourados sempre trouxeram –, no entanto, também é competente o suficiente para não trazer qualquer tipo de sensação de vergonha alheia (o risco é sempre iminente nesse cenário de “retorno”). É uma continuação do processo elaborado pela banda em projetos anteriores, no qual consiste uma sensação de tranquilidade, um “estranho familiar” que reside em um sofisticado e bem-vindo amadurecimento musical dentro do campo que eles mesmos exploraram tão bem ao longo dos anos; mas também, obviamente, habita uma nostalgia inerente – é como dar a partida em um carro após o stand-by de 13 anos (sem Frusciante).
Esse sentimento nostálgico é muito bem desenvolvido no livro Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past (2010), do crítico britânico Simon Reynolds. Nele, o autor argumenta a existência de uma nova onda musical que vem se apropriando do passado, principalmente dos sons entre 1960 e 1970. De certa forma, deixamos de sonhar e passamos a vivenciar um espaço de “futuros perdidos”, no qual os artistas deixam de trazer novidades musicais e transformam-se em “curadores”, esquecendo qualquer viés transgressor que se convencionou a atribuir à Arte. Esse sentimento parece descrever a sensação de nostalgia que vem dominando o cenário musical, e, inevitavelmente, a mesma que domina Unlimited Love. O retorno de Frusciante não é apenas a volta de um guitarrista virtuoso, mas tende a encaixar novamente a banda naquele velho cenário dos anos 2000.
Mesmo com essa visão “assombrológica” – no sentido de espectros musicais que cercam sons que não pertencem a eles –, os Chili Peppers sempre foram bons em colocar o público dentro de seu próprio espaço, de modo a fazer com que pairasse uma espécie de consciência coletiva acerca do grupo, ligada a um estilo de vida despretensioso, através de uma conexão íntima que visava até mesmo o transcendental (como em The Zephyr Song). O lado ruim foi o fato dessa abertura transformar os ouvintes mais fanáticos em membros de uma “grande família Chili Peppers”, colocando os integrantes da banda no escrutínio da vida pública – aquela velha característica de identificação idealizada através de alguma manifestação artística. Mas, talvez, a brincadeira mais perspicaz sobre isso seja do próprio quarteto, que no videoclipe de By the Way retrata um fã maluco e completamente obcecado por Anthony Kiedis. No fim das contas, o Red Hot Chili Peppers é isso: quatro indivíduos que riem de si mesmos; e, embora Unlimited Love não seja um disco para deixar fãs obcecados, é importante que exista e ganhe seu próprio espaço.